Carta do Dathun na vida comum
- danieltrouche
- 1 de nov. de 2020
- 4 min de leitura
Atualizado: 10 de nov. de 2020
“O maior problema de todos é que queremos reprimir as coisas e colocá-las de lado, e assim nos tornamos especialistas em enganação”.
Texto inicialmente publicado no Medium.

Dathun é um formato de retiro de um mês proposto pelosábio mestre budistaChögyam Trungpa Rinpoche, em 1973. Já a vida comum é o que todos conhecemos como a nossa experiência corriqueira; também se diz vida banal ou ordinária, sem que estes conceitos sejam regras absolutas. A única coisa absoluta é o caráter permanente da mudança. O que somos ou pensamos é insistentemente considerado ao longo dos dias, que se repetem por anos, e a preciosidade da Carta do Dathun aponta para uma compreensão sutil, ampliando-se através da prática tradicional de meditação, onde olhamos para os pensamentos sem abafá-los ou negá-los, e sem entrar num oceano artificial de emoções.

Hoje li a revista Bodisatva e lá estava ela, a Carta do Dathun, em que Trungpa Rinpoche elucida com clareza distinta como funciona a meditação shamata, prática que remonta ao tempo do buda histórico, há mais de 2.500 anos. Enquanto me preparava para a leitura, eu viera de pensamentos pouco edificantes, para ser sincero, sobre como me inserira em determinada situação ou como arquitetava planos para sua superação. Não há nada de errado nisto, é perfeitamente compreensível, e sobre estes pontos o que encontramos em shamata é uma prática para não acabar preso nestas ideias, sem nos vitimarmos ou negarmos sua existência. Portanto, esclareço que ter ideias é importante, mas ser sufocado por pensamentos ou obsessões pode ser terrivelmente prejudicial.
Tudo o que nós sabemos acaba saturando a pretensão do conhecimento; assim como o céu carrega as estrelas e sabemos que estarão ali se a buscarmos, temos a sensação de saber que nossa vida continuará com as mesmas emoções e inverdades, ou pior, falsamente vazia. Será que nos conhecemos realmente, ou que alguém em especial nos conhece? — talvez seja um questionamento que possa surgir. Talvez estas perguntas possam encontrar um sentido além dos pensamentos, em shamata. Para Trungpa Rinpoche, essa meditação pode ser descrita na expressão “tocar e ir”.
“Quando você senta na almofada, você sente que está sentado na almofada e que realmente existe. Esta é a parte do “tocar”. A parte do “ir” é que você está lá — e você não se agarra a isso. Você não sustenta seu senso de estar, mas solta até mesmo isso. Tocar e ir”.
Quando sentamos no sofá ou mesmo fazendo nossas atividades, pode até ser andando, pensamos sobre diversas pessoas ou problemas que enfrentamos ou como planejamos sua resolução, o fato é que não controlamos muito bem esta ação mental, mas quando nos observamos nessa plena atividade, encontramos o silêncio e, com ele, um entendimento acerca de quem somos.
A prática de shamata deve estar associada a uma postura correta, postura de motivação em relação a sua prática e postura corporal que a favoreça; neste sentido, a recomendação é que se medite sentado, com as pernas cruzadas e a coluna ereta, mas relaxada. A respiração deve ser natural e a musculatura necessita de relaxamento. Quando ficamos tentando corrigi-la, caímos em um pensamento aprisionador.
“A atitude em relação à respiração, na meditação, é se tornar a respiração. Tente se identificar completamente em vez de observá-la. Você é a respiração, a respiração é você. A respiração está saindo pelas suas narinas, saindo e se dissolvendo na atmosfera, no espaço. Você emprega uma certa energia e esforço nisso. E então, em relação à inspiração, você deveria tentar deliberadamente absorver as coisas? Não é recomendado. Apenas boicote a sua respiração, boicote sua concentração na respiração. À medida que o ar sai, deixe-o se dissolver, apenas abandone-o, boicote-o”, descreve Trungpa Rinpoche.
Há um espaço até a superação da preocupação com a postura e a respiração, e quando o atingimos, surgem mais pensamentos, e podem variar, como: Agora estou meditando. Irei escrever um livro. Quando encontrar tal pessoa é só relaxar, ouvir e deixar passar, irá me reconhecer. Depois tenho que agendar isto ou aquilo em meu trabalho. Aquilo que falei para meu pai ou mãe ontem não foi legal. Ano que vem vou mudar de cidade. Preciso lembrar de comprar aquele livro depois da meditação — e por aí vai. Às vezes, a mente lembra de comprar um livro sobre meditação no exato momento em que se medita e os caminhos estão abertos para fazê-lo; contudo, os pensamentos indicam um caminho condicionado em um movimento racionalizado, absorvente e um tanto obsessivo. É muito comum nos prendermos em listas e agendas que tendem ao infinito, sem nos dedicarmos à nossa própria essência ou focarmos em uma única meta, portanto, desconhecemos as armadilhas que nossa mente coloca a cada dia através de gatilhos mentais, que por sua vez, operam como verdadeiras prisões.

Imagem: Coleção Thalyta Robertta.
“A abordagem para lidar com isso é, na verdade, abordagem nenhuma. Reduza tudo ao nível do pensamento em vez de conceitos. Normalmente, se você tem conversas mentais, você as chama de seus pensamentos. Mas se suas conversas são profundamente emocionais, você as confere um prestígio especial. Você acha que esses pensamentos merecem o privilégio especial de serem chamados de emoção. De certo modo, no âmbito da mente verdadeira, as coisas não funcionam assim. É tudo apenas pensar: pensar que você está excitado, pensar que você está bravo. No que diz respeito à prática de shamata, os seus pensamentos não são mais considerados V.I.P. enquanto você medita. Você tem pensamentos, e tem pensamentos sobre os pensamentos. Deixe que aconteça dessa forma. Chame-os de pensamentos”, descreve Trungpa Rinpoche.
Em outro conselho, o mestre diz que podemos nos sentir agressivos, bravos ou luxurioso e para isto não devemos simplesmente nos desconectar destas ideias. É importante reconhecê-las e enxergá-las intimamente. Pode ser um constrangimento do passado ou uma aparência pessimista em relação ao futuro e, antes de tentarmos esquecer e voltar a respiração, devemos tirar proveito de suas experiências.
“Se você sente que sentar e meditar é uma forma de evitar os problemas, então este é precisamente o problema. Na verdade, a maioria dos problemas da nossa vida não resultam de sermos pessoas agressivas ou luxuriosas. O maior problema de todos é que queremos reprimir as coisas e colocá-las de lado, e assim nos tornamos especialistas em enganação. Este é um dos principais problemas. A prática de meditação deveria desmascarar qualquer tentativa nossa de desenvolver uma atitude de engano sutil, sofisticada”, ensina Trungpa Rinpoche.
Leia a carta na íntegra, traduzida e publicada na revista Bodisatva,
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