José Mujica: um adeus que perdura com sabedoria
- danieltrouche
- 1 de nov. de 2020
- 3 min de leitura
Atualizado: 10 de nov. de 2020
"Sou passional, mas em meu jardim há décadas não cultivo o ódio. A vida me ensinou uma dura lição, o ódio acaba nos deixando estúpidos porque nos faz perder a objetividade diante das coisas".
Discurso de despedido do ex-presidente uruguaio José Mujica.
Na última terça feira (20) o senador da Frente Ampla e ex-presidente do Uruguai (2010–2015), José Mujica, apresentou sua renúncia ao Senado. Com 85 anos e a saúde debilitada, o líder uruguaio disse que a ameaça do novo coronavírus o obrigou a se afastar — “ser senador significa falar com gente e andar por todo lado. O jogo não é jogado nos escritórios, e sou ameaçado por todos os lados por duas circunstâncias: a velhice e uma doença imunológica crônica”, explicou.
Ao analisarmos a política nos últimos trinta anos e a trajetória de Mujica, nos deparamos com uma visão praticamente sem igual, ao menos ao buscar algum nome que tenha atingido uma liderança tão sólida e a presidência em seu país. Mujica sai da política para entrar na história. Foi um líder que transcendeu a política, seu nome tem o mesmo peso de lutadores pelos direitos humanos e pela liberdade como Nelson Mandela, Gandhi, Martin Luther King Jr, e possivelmente outros poucos.
“Já passei por tudo na vida. Fui amarrado com fios de arame por seis meses com as mãos atrás das costas, desmaiei por não aguentar estar trancado em um caminhão por dois ou três dias; passei dois anos sem ser levado para tomar banho, tendo que me banhar com um copo da água e um lenço. Já passei por tudo, mas eu não odeio ninguém. Quero transmitir aos jovens que a vida deve ser agradecida, porque vencer na vida não é ganhar, mas levantar-se e recomeçar cada vez que se cai”, pronunciou bravamente antes de agradecer e se despedir no Senado.
A ditadura militar manteve Mujica preso por 15 anos. O regime mantinha presos políticos como seus reféns; caso os Tupamaros — o Movimento de Libertação Nacional — retomasse a luta armada, os presos seriam executados. Somente em 1985, com o retorno da democracia no Uruguai e a anistia geral decretada, voltou a política, passando pelo Senado, o ministério da Agricultura e a presidência.
“Quero agradecer porque há um tempo para chegar e há um tempo para ir embora da vida. Entre os deputados que tivemos embates, simbolizo meu agradecimento citando Alejandro Atchugarry, um liberal de marca maior, não um liberal na economia, mas na humanidade. Fomos adversários sem nenhuma ofensa ao longo dos anos, e ele foi um homem de categoria superior. Quero nomeá-lo como símbolo de algo que deve ser discutido e que deve ser conservado, a bonomia (característica própria de pessoa bondosa), apesar da rispidez do sistema político deste pais”.
Em seu pronunciamento, entre passagens emotivas e agradecimentos, Mujica mencionou que o ódio é cego como o amor, e neste ponto contrapôs, mais do que sua história, os recentes movimentos de extrema-direita que chegaram ao poder na América Latina justamente com discurso de preconceito contra as minorias. Lembrou que apenas o amor pode criar, pois o ódio é destrutivo. O líder ainda deixou uma mensagem sobre as mudanças que o tempo impõe e citou a época digital como nem pior nem melhor do que o tempo anterior, mas distinta.
Privacidade e intimidade na Era Digital
“Acho que apareceram problemas. Problemas tecnológicos que são capazes de predizer como é o caráter e como são essencialmente as linhas motrizes da conduta humana, do comportamento, as vezes sem nem mesmo falar conosco no mundo digital. E este será um dilema que terão os Estados e os sistemas políticos do futuro”, disse. O questionamento aponta para a liberdade e a privacidade em uma era em que as pessoas tem suas vidas expostas nas redes sociais.
“Até pouco tempo acreditávamos em uma definição de liberdade, e agora a ciência (propõe na verdade a tecnologia) nos diz que se libertar significa seguir desejos e inclinações; mas se liberdade significa que somos capazes de gestar inclinações e desejos, a liberdade não existe. Esse é um problema a ser enfrentado pelas novas gerações, e a política terá que assumir, porque a política é a luta pela felicidade humana, mesmo que isso soe como uma quimera”.
Mujica discorreu enunciando ainda que na política os homens e as mulheres passam, mas algumas causas sobrevivem e têm que se transformar. “Porque a única coisa permanente é a mudança”, foram as palavras do ex-presidente uruguaio José Mujica.
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