A maldição da mansão Bly
- danieltrouche
- 1 de nov. de 2020
- 4 min de leitura
Atualizado: 10 de nov. de 2020
Série de Mike Flanagan encontra na melancolia da culpa e em reflexos de traumas uma maneira “perfeitamente esplêndida” para contar uma história de fantasmas.
Texto inicialmente publicado no Medium.
Nos últimos dias eu andava pensando nos efeitos da culpa, em como ela pode somatizar em processos psicológicos que se perdem ao longo da vida, quando surgiu a sugestão para assistir a série A maldição da mansão Bly¸ disponível na Netflix. É do mesmo criador de A maldição da Residência Hill, e como o lugar em que ocorre uma boa história de fantasmas constitui o pano de fundo para o desenvolvimento dos personagens, apostei que um novo cenário poderia ser a chave de Flanagan para nos contar algo novo sobre nossos fantasmas internos.
Se fosse um pitaco sobre sua qualidade eu teria acertado, mas não completamente, a ligação com histórias de morte e espíritos dependem da direção que apontamos o nosso olhar. A série não traz algo originalmente novo em relação a Residência Hill, mas muda o tom; larga os sustos para mergulhar na vida, nos amores e nos fracassos. Inspirada em A volta do parafuso, livro publicado por Henry James em 1898, também se passa em uma casa de campo na localidade de Bly, que é fictícia. Bly deriva do termo inglês para pessoa gentil ou alegre, o que apenas encontra sentido em uma antiga história por trás da velha mansão — o público só a conhece no penúltimo episódio.
Uma boa história de fantasma precisa conversar com caráteres simbólicos da vida, e é o que ocorre com cada personagem ao entrelaçarem suas vidas com a essência pesada que paira sobre a mansão; a conjugação torna-se explícita na existência sobrenatural do lugar, com seus ambientas imensos, quadros muito antigos pendurados nas paredes, elegantes jardins e o lago de ar lúgubre e pantanoso onde jaz sepultado em um baú de memórias o fantasma sem rosto de Viola Lloyd, apontando para uma história paralela que remonta ao século XVII. Toda a trama será amarrada em seu passado.
Nem tudo deveria permanecer como um drama em Bly, o problema é que todos estão extremamente machucados, e até querem superar suas dores, mas as chances nunca são favoráveis a um desfecho melhor. A mansão sepulta tragédias inevitáveis, amores que não superam as veias abertas da dor e memórias que se apagam com o tempo em fantasmas sem rostos. O primeiro episódio começa com a contação de uma história de fantasmas na véspera de um casamento, a narradora segue expondo os desenlaces em Bly ao longo dos demais episódios, e a certa altura, revela: Tudo cede com o tempo. Carne, pedra, até as próprias estrelas. O tempo leva tudo. O passado some, as lembranças desaparecem, e, é verdade, o espírito também. Tudo cede ao tempo, até a alma, e também o seu rosto.

Jantar com Hannah, Miles, Owen, Flora e Dani.
O enredo
Acompanhamos a jovem americana Dani Clayton, uma ex-professora que após seis meses em Londres — estamos em 1987 — consegue um trabalho como au pair para cuidar de dois órfãos: Miles, de dez anos, e Flora, de oito, em uma mansão no interior. Dani possui seus próprios mistérios e perdas pessoais; Senhor Windgrave, um advogado que nunca deixa o escritório em Londres a contrata para cuidar dos sobrinhos. Ele também possui seus traumas e está intimamente ligado a mansão, mas por mais que o remorso venha lhe cobrar o passado como se fosse um tipo de fantasma que o tortura sem piedade, nunca está disponível para os jovens Miles e Flora, mesmo depois de dois anos da tragédia em que seus país morreram. “Lord Windgrave preferia os confins do escritório ao conforto do apartamento londrino. Ele se aprisionava lá, dia e noite, absorto no trabalho, em sua rotina noturna, até estar atolado nele, até não restar mais cabeça para pensar em outras coisas, até ele se sentir mais como si mesmo, seja melhor ou pior”, frisa a narradora.
A mansão Bly revela a história da antiga babá, Rebecca Jessel, uma jovem ambiciosa e inteligente, com um bom coração, mas também havia Peter Quint. Este trabalhava para Windgrave e, sua relação com Rebecca, desde o início, mexeria com as estruturas da babá a ponto de traçar um caminho perigoso e sem volta a ponto de acabar morta. As crianças, portanto, ainda tinham este trauma a lidar. Flora foi quem encontrou o corpo de Rebecca no lago. A governanta, sra. Hannah Grose, diz a Dani: “o garoto é encantadoramente educado e inteligente, a menina, recatada, educada e tem uma personalidade forte. Assim como o sol, as nuvens e a chuva apareciam sem avisar, era igual com o ânimo das crianças”.
A Maldição da Mansão Bly tende para a inevitabilidade dos acontecimentos, os julgamentos ficam por conta de cada personagem, gerando uma culpa inconsciente que na amplidão do casarão ressoa em caminhos obscuros. Falando em julgamentos, em dada passagem Peter disse a Miles que a vida se trata de chaves, explicando porque deu flores para Flora sugerindo para que dividisse com Srta. Jessel. “Pessoas são como quartos trancados. Têm fechaduras diferentes, e você deve adivinhar o formato da chave, assim como existem chaves para todas as portas desta casa absurda e excessivamente grande. Chaves diferentes para portas diferentes. Se quiser que alguém abra uma porta, precisa tentar chaves diferentes até encontrar a que funciona. Para pessoas como seu tio, a chave que funciona é o dinheiro, ou bajulação. Para cavalos, cenouras. Para mulheres, para a maioria, são flores”.
Em outra cena, Owen Sharma, o cozinheiro, diz a Hannah enquanto bebem vinho em frente à fogueira: não podemos contar com o passado. Foi o que aprendi cuidando da minha mãe. É parecido com a demência, não é? Achamos que está preso nas memórias…, mas memórias somem ou estão incorretas. Qualquer um de nós poderia morrer a qualquer momento, ou nos esquecer de nossas vidas, que é como morrer. Dani conta a Jamie, a jardineira, que as crianças andam estranhas, a história entra no clímax quando ela acorda amordaçada e amarrada, as crianças a observam apreensivas, e os espíritos de Peter e Jessel estão presentes.
Não contarei o desenvolvimento, pois perderia a grande surpresa para o desfecho que amarra todos os episódios de uma história de fantasmas que é mais sensível do que aterrorizante. O que podemos esperar é uma alusão às memórias e como os personagens ficam presos a elas. Culpas e remorsos são revividos como se todos estivessem atados às emoções, e assim, identificados com elas, permanecendo presos como se não pudessem ser outra coisa.
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