O dilema das redes é o de todos
- danieltrouche
- 19 de out. de 2020
- 6 min de leitura
Atualizado: 10 de nov. de 2020
Documentário da Netflix apresenta denúncia de ex-executivos do Vale do Silício que acusam as redes sociais de trazerem uma ameaça existencial.

Logo no início, o novo documentário da Netflix, O dilema das redes — direção de Jeff Orlowski — cita Sófocles, “nada de grandioso entra nas vidas dos mortais sem uma maldição”, dando o tom crítico em relação as redes sociais. A produção conta com os relatos de ex-executivos das maiores empresas do ramo, como o Facebook, Instagram, Google, Youtube, Apple, Twitter, Palm e Mozilla.
As ferramentas digitais trouxeram mais facilidade de comunicação para o mundo, reunindo famílias sem contato, facilitando o encontro de doadores de órgãos e até proporcionou mudanças sistêmicas que beneficiaram todo o mundo. Estes aspectos positivos foram tratados como um salto evolutivo para a comunicação e integração da sociedade. Contudo, o outro lado da moeda também cobrou o seu preço e as consequências são alguns dos temas mais falados na atualidade, como a propagação das fake news.
Apesar das empresas de tecnologia continuarem crescendo, surgiram estudos sobre o uso das redes sociais e a saúde mental, um assunto que o documentário demonstra com a dramatização de uma família e os filhos que estão viciados em seus dispositivos eletrônicos. Enquanto isto, a televisão da residência transmite a notícia de que as fake-news ficaram mais sofisticadas, ameaçando sociedades do mundo todo. São citados o caso da influência russa nas eleições presidenciais norte-americanas e a limpeza forçada dos conteúdos do Youtube.
A mãe da família pede que a filha mais nova, Isla, arrume a mesa, mas a criança está grudada no smartphone e não responde. As notícias na televisão falam sobre depressão em crianças ocasionadas pelo uso das mídias sociais, além do aumento de pessoas que buscaram procedimentos estéticos para ficarem mais parecidas com suas fotos e filtros — os cirurgiões chamaram de “Dismorfia do Snapchat”. Isla não se interessa pelo que a mãe diz, a irmã mais velha questiona por ela ter deixado a irmã mais nova ter um telefone celular e ouve da mãe:
— O que eu podia fazer? Todas as crianças da turma dela têm.
— Ela só tem 11 anos! — responde a mais velha, indignada.
O filho do meio a critica por também estar conectada, e enquanto isto o jornal denuncia que o capitalismo da vigilância tem moldado a política e a cultura de uma forma que muitos não percebem.
“O EI atraiu seguidores pela internet e agora supremacistas brancos fazem o mesmo”, enquanto assistimos imagens de supremacistas em marcha pelas ruas dos Estados Unidos.
A sequência mostra um caso na Índia em que grupos de linchamento da internet mataram dezenas de pessoas, embora fosse uma fake-news, o que evidencia as consequências imediatas do mal-uso e manipulação da informação nas redes. Ainda pior do que isto, questina como lidamos com a pandemia da Covid-19 em plena era das fake-news.
Só no Brasil, houveram fakes que voaram como mísseis em direção aos cuidados médicos divulgando remédios caseiros, curas milagrosas, e a exaltação da hidroxicloroquina apesar do medicamento não ser comprovado cientificamente como eficaz no tratamento da Covid-19; outras notícias apontavam que não havia doença alguma, era apenas uma manipulação dos governos, ou ainda que a vacina irá modificar o DNA dos seres humanos, e que 80% da população mundial seria imune. Um estudo da Fiocruz identificou uma série destas fake-news.
Tanto o problema de saúde originado nas crianças quanto a propagação de notícias falsas foram impulsionadas pelas redes sociais, o que me faz refletir que as redes não são a causa deste desvirtuamento organizado, mas impulsionam o mal-uso e as intenções antidemocráticas, elevando a tensão na sociedade, sem se importar com o aspecto moral e cultural, ou sequer sem se importar com o monstro que a desinformação está criando nas sociedades do mundo inteiro.
Um dos executivos entrevistados é Tristan Harris, ex-designer ético do Google e co-fundador do Center for Humane Technology. Ele aponta que a raiz de todos estes problemas como as fake-news, polarização, vício, roubo de dados, trata-se de um problema da indústria da tecnologia. Tristan ficou conhecido por falar publicamente sobre design ético, sua história no Google e como estava frustrado com a indústria tecnológica. Com a pretensão de causar um impacto na empresa, escreveu um manifesto sobre como 50 designers entre 20 e 35 anos de idade, homens brancos da Califórnia, haviam tomado decisões que impactaram 2 bilhões de pessoas, com as notificações do Google e como as pessoas as receberiam. Tristan conta que enviou o manifesto para vinte colegas próximos dentro no Google. No dia seguinte houveram 400 visualizações simultâneas na empresa e logo recebia e-mails de todos os departamentos.
As pessoas diziam: “concordo totalmente, vejo isso afetando meus filhos. Vejo afetando as pessoas ao meu redor. Temos que tomar uma atitude”. Posteriormente, o próprio Larry Page, co-fundador do Google, foi notificado sobre o manifesto em três reuniões, o que trouxe uma esperança de mudança. Mas nada aconteceu.
Tim Kendall, ex-executivo do Facebook, ex-presidente do Pinterest e CEO da Moment, lembra como o Google teria criado coisas fantásticas para o mundo e como era uma máquina de gerar dinheiro. Nos primeiros anos do Facebook, foi contratado como diretor de monetização e a publicidade foi o meio indicado. Dentro da empresa, um setor criava estratégias para que as pessoas ficassem cada vez mais tempo na rede social.
“Quanto tempo da sua vida podemos te convencer a nos dar? — questiona.
Roger McNamee, um dos primeiros investidores do Facebook, disse que nos últimos dez anos as empresas do Vale do Silício ganham dinheiro vendendo seus usuários. Aza Raskin, ex-Firefox e Mozilla Labs e co-fundador do Centre for Humane Technology, demonstra como não pagamos para usar as redes sociais, os anunciantes é que pagam.
“Os anunciantes são os clientes. Nós somos o que é vendido”. Tristan Harris cita uma clássica constatação: “se você não está pagando pelo produto, então você é o produto”. A nossa atenção é vendida aos anunciantes.
Para Shoshana Zuboff, PhD da Harvard Businee School, esse é o sonho de qualquer negócio, Tristan aponta que é o chamado capitalismo de vigilância, gera lucro através do controle de dados sobre o que cada pessoa faz, seus hábitos de consumo, gostos pessoais, que garantem para os anunciantes uma margem de sucesso.
“É um novo tipo de mercado que negocia exclusivamente o futuro do ser humano em larga escala, produzindo trilhões de dólares para as empresas de tecnologia”, aponta Shoshana.
O controle da big data está tão aperfeiçoado que é possível saber o tempo que cada um passa olhando a foto de uma pessoa, o que alguém faz de dia ou à noite, se é introvertido ou extrovertido, quais as neuroses de sua personalidade, e com isto criam estratégias que são programadas em algoritmos capazes de oferecer o que cada um precisa, ou acha que precisa, de modo a manter as pessoas nas redes sociais por mais tempo. É este o paradigma atual. Trabalhamos, vivemos e nos engajamos com as redes sociais, mas, isto é bom ou ruim? — devemos nos perguntar.
Ao olharmos para a questão das redes sociais com um olhar amplo, vemos países sendo afetados, democracias ruindo por meio de mecanismos que convertem notícias falsas em determinadas manipulações que são capazes de criar protestos, movimentos desagregadores e o caos em diversos países. O documentário cita as eleições presidenciais no Brasil, em 2018, que teve uma imensa influência das mídias digitais influenciando diretamente no resultado, sem que com isto os eleitores tivessem tido contato com projetos ou dados que indicassem os meios que um candidato ou outro tomaria para obter resultados. Tratou-se apenas de um movimento ideológico polarizador impulsionado pelas redes.
Para Tristan, a indústria tecnológica criou mecanismos que desestabilizaram a sociedade em todos os países. A tecnologia em si não parece ser uma ameaça existencial, sua capacidade exponencial em trazer à tona mais o lado ruim do que o bom da sociedade é o grande risco de criar caos em massa, alienação e polarização. Aza Raskin lembra que no início as empresas do Vale do Silício partiram da ideia de uma tecnologia humanizada, mas isto ficou para trás porque começaram a fazer o que seria legal em vez do que seria o correto.
O questionamento final do filme é se podemos construir uma tecnologia humanizada, e se podemos tornar o mundo melhor. A produção do filme é da Exposure Labs, uma produtora de filmes e impacto. Ela possui uma plataforma digital com conteúdo e campos de ação em prol de uma internet mais humanizada, com ações e propostas que ajudam a mudar a forma como a tecnologia é desenhada, regulada e utilizada. Vale a pena conferir!
E você, gostou do documentário? O que acha a respeito?
Saiba mais em thesocialdilemma.com
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