Segredos de Saqquara: a vida de um sacerdote no Egito Antigo
- danieltrouche
- 1 de nov. de 2020
- 7 min de leitura
Atualizado: 10 de nov. de 2020
Em 2018 uma equipe de arqueólogos egípcios descobriu um tesouro arqueológico que remonta 4.400 anos, na Necrópole de Bubasteion, perto das falésias orientais do deserto.
Texto inicialmente publicado no Medium.
A expressão universal do tempo é uma viagem com destino a diferentes espaços, e nesta história, ela vai de encontro ao passado. Todos os humanos experimentaram o tempo, em todas as idades, épocas e em diferentes orientações de pensamento. Para Platão, o tempo é uma criação divina que orienta o caos. Aristóteles define tempo como medida de mudança. Os Vedas apontam para a formação de ciclos de criação, destruição e renascimento. Para o arqueólogo, o tempo é a massa modeladora em que a história é grafadas.
A partir desta massa, em novembro de 2018 uma equipe de arqueólogos egípcios, caçando tumbas em um cemitério antigo perto das falésias orientais, sob a temperadora de 33ºC, desenterrou uma descoberta única. Uma tumba completa e perfeitamente preservada, como nunca antes vista, e escondida há mais de 4.400 anos.
Próxima da pirâmide de Djoser, a pirâmide de pedra mais antiga do mundo, a descoberta ganhou os principais noticiários ao redor do mundo. O que sabemos sobre a descoberta é parte de um estudo dos arqueólogos baseado nos mais de 3 mil artefatos encontrados e na tradução dos hieróglifos das paredes que narram a vida como era compreendida na época dos faraós. As pessoas acreditavam que a verdadeira vida começava após a morte. Para nós, a vida é o que está acontecendo agora e o caminho mais fácil para acessar esta história pode ser conferido no documentário Segredos de Saqquara, disponível na Netflix. Pelo diálogo, logo no início, compreendemos a magnitude do trabalho que seria realizado e filmado.
— Sr. Hamada. — Sim, chefe? — Tem algo lá embaixo. — Em nome de Alá! O que é isto? — Encontram uma estátua. — Ghareeb, é a deusa do leão.
A história logo veio à tona, agitando todo o Egito sob as areias do deserto a oeste do Cairo. A descoberta mais importante em décadas fora confirmada. Haviam sido encontradas dezenas de estátuas em uma tumba particular, o que nunca ocorrera, algo intocado, em bom estado de preservação e, mais importante, em condições de mostrar mais sobre a vida na época.

Estátuas foram encontradas em estado de conservação ao lado de figuras.
O Ministro de Antiguidades do Egito logo anunciou a tumba pertencente a Wahtye. Os hieróglifos viriam a confirmar que se tratava de um sacerdote importante, superintendente do estado divino, e superintendente do Barco Sagrado da quinta dinastia de faraós, um período turbulento e de agitação política e religiosa. Segundo Mohammad Mohammad Yousef, doutor em egiptologia, desde o início da descoberta o nome Wahtye foi encontrado, seria o dono da tumba, mas não sabiam nada sobre ele. Como conhecer a história de um homem que viveu há 4400 anos? Às vezes é difícil até de analisar a biografia de uma personalidade mais recente. “Precisamos ler os hieróglifos para descobrir quem é Wahtye”, afirmou Yousef. A escavação nas pedras só começaria após sua leitura.
Quando o chão foi limpo, a equipe, de centenas de escavadores, encontrou quatro poços cheios de areia. Achar os restos de Wahtye e família seria melhor do que encontrar ouro, contudo, os trabalhos estavam em março de 2019 e em seis semanas teria início o mês sagrado do Ramadã, e os fundos para o trabalho iriam acabar. A região tinha um espaço onde havia grandes centros de culto animal, e em seguida encontraram gatos mumificados. Para Salima Ikram, arqueóloga funerária e arqueozoóloga, Bubasteion era um centro de culto e um templo dedicado à deusa Bastet.
“Ela é a deusa da maternidade, da beleza e do amor, mais comumente vista como um gato ou uma mulher com cabeça de gato. Bastet tem um lado calmo e um lado assustador. No lado calmo ela é uma gatinha brincalhona e vai cuidar dos filhotes dela. No lado assustador, ela é uma leoa. Ela é a deusa da vingança e das pragas, chamando-se Sekhmet, nesse lado”, explica a arqueóloga.
Foi encontrada uma estátua de cerâmica vidrada da deusa Sekhmet datada de 500–300 a.C. com a inscrição: Para Sekhmet, amada pelo deus Ptah, que ele lhe dê toda a saúde e todo o prazer, como Rá, para sempre. A leitura dos hieróglifos nas tumbas é complexa, as palavras podem estar escritas da direita para a esquerda ou vice-versa, e de cima para baixo ou o oposto, até que encontraram as citações a Wahtye. Naquela época os sacerdotes eram grandes autoridades, eram como intermediários entre o rei e o povo, e entre o rei e o deus dele, por isto sua tumba era tão magnífica. Foram encontradas 54 estátuas de Wahtye. “Tem várias cenas do dia a dia e cenas religiosas, em detalhes, e ele queria transferir tudo para a vida após a morte”.
Wahtye, o sacerdote
A tumba de Wahtye, o sacerdote, foi datada entre 2.415 e 2.405 a.C. Foram construídas capelas de túmulo que ficavam acima do solo, além de um poço ligando-se ao leito subterrâneo onde estaria a câmara funerária, o local onde realmente a múmia deveria estar enterrada. Acima do solo, a capela era decorada lindamente, com todos os tipos de cenas que mostravam a vida ideal que desejavam para a eternidade. Todo o complexo de tumbas era imaginado para funcionar como uma máquina ressuscitadora que permitia a ida deste mundo para o mundo após a morte, e uma existência fabulosa para sempre. Tratava-se de uma tumba familiar de Wahtye, sua mãe, quatro filhos e a esposa.

Escavação dos poços.
Dez metros a oeste da tumba de Wahtye ficava o poço mais velho e profundo descoberto no local, lá foi encontrado uma necrópole de gatos. Em cada templo havia um gato que era a manifestação divina, durante sua vida a criatura seria tratada como um deus. Comia, tomava água e era adorado, basicamente. As pessoas davam oferendas a essas criaturas, além de amuletos e estátuas feitas de madeira, pedra, faiança e até bronze. Ao redor encontram também um filhote de leão mumificado de cerca de 600 a.C.
Acharam imagens com muitas palmeiras, como de fato existia na época dos faraós. “As pessoas imaginam eles vivendo na areia do deserto porque é onde estão agora, mas na época também havia áreas verdes, e eles plantavam, como aparece nas pinturas em pedra”, diz Salima. Ao que se observa, Wahtye passou a sua existência se preparando para a próxima vida. Esperavam, à época, que vivessem a após a morte no “Campo dos Juncos”, um lugar parecido com o Egito que conheciam, mas ainda mais fantástico. Acreditavam que a atenção deveria ser dedicada também à sala de julgamento, onde a alma ficaria diante de Osíris, deus da morte e da ressurreição.

Caixão de madeira pintado.
Conspiração e os 42 juízes
“Para chegar ao paraíso era preciso ficar ante 42 juízes e jurar que não havia cometido certos pecados. Depois vinha a pesagem do coração, em que o coração da pessoa era pesado contra a pena da verdade e da justiça. Se o coração fosse mais pesado, seria comido por um demônio com cabeça de crocodilo, e a pessoa se perderia para sempre. Mas se o coração e a pena se equilibrassem, a pessoa era declarada verdadeira e a jornada para o Campo dos Juncos poderia começar”, ensinam os egiptólogos.
Um dos tradutores acreditava que teria ocorrido uma conspiração. Wahtye teria tomado a tumba de alguém? A vítima teria sido seu irmão? Fora encontrada uma música dedicada ao espírito dele. Em outra parede havia a inscrição: estou com os juízes. A sentido indicava que Wahtye se colocava com os outros juízes para que ele mesmo pudesse se absolver desse possível pecado. “Eu não roubei”, estava escrito em outra parede.
O documentário mostra que o método de mumificação dos egípcios consistia em enfiar um palito no nariz, quebrando o osso para acessar o cérebro e tirá-lo, então faziam um corte do lado esquerdo para tirar os órgãos internos: o fígado, pulmões, estômago e intestinos. Depois usavam natrão para secar o corpo, uma junção de bicarbonato de sódio e sal, e enrolavam o corpo usando ataduras de linho, recitando feitiços, rezando e queimando incenso.
Osíris, Ísis e o surgimento da mumificação
Dizem que a história de mumificar corpos foi influenciada pela história dos irmãos Osíris e Ísis. Osíris governava o mundo até que seu irmão, Set, o matou e o cortou em pedaços, espalhando pelas terras do Egito. Ísis era uma mulher mágica. Andou pelo Egito coletando os pedaços de Osíris, unindo-os com linho, no que é considerado o primeiro ato da mumificação. Com isso, ela o trouxe de volta à vida e tiveram um filho, Hórus. Ele cresceu para vingar a morte do pai e governar o Egito como rei da vida na Terra, mas Osíris acabou se tornando rei do submundo e o deus da morte e da ressureição.
Ossadas despontam uma nova teoria
Dentro de um poço acharam os ossos de uma criança. Através dos ossos é possível analisar muitos fatores da vida. Segundo Amira Shaheen, professora de reumatologia na Faculdade de Medicina do Cairo, é preciso estudar cada peça, os fragmentos, e o trabalho consiste em determinar o número de ossadas, saber os traços comuns e as características diferentes dos ossos. O poço perto da porta tinha ossos de dois adolescentes. Em uma outra caixa havia três esqueletos, indicando a morte de três filhos ao mesmo tempo. O estudo dos hieróglifos indicava Wahtye, esposa e quatro filhos.
Foi encontrada uma câmara funerária completa datada de 600 a.C, com ossos quebrados, e equipamentos para a vida após a morte; uma caixa com um jogo feito de argila, com peças feitas de ossos e vinte quadrados, poderia ser um jogo de xadrez da época, na antiguidade chamavam de senet. Depois encontraram um buraco na falésia e dentro uma câmara funerária com três crânios e seus ossos, e ainda um caixão de madeira entalhado datado de 1.295 e 1186 a.C. No final, as crianças encontradas eram mesmo quatro, sendo três rapazes e uma garota; pela disposição dos corpos, surgiram suspeitas de que todos haviam morrido por uma mesma circunstância.
Wahtye é encontrado
Descobriram ainda uma pedra com desenhos do período Raméssida, com a cártula do Rei Ramsés II. Peças com mais de 3.300 anos. E uma estátua de calcário de um nobre raméssida entre 1.279 e 1213 a.C. Depois localizaram o corpo de Wahtye em um caixão simples de madeira. O crânio indicava sinais de uma estrutura frágil, e teria aproximadamente 35 anos em sua morte. Os ossos indicaram o sinal de alguma doença, provavelmente malária, o que pode ter afetado toda a família. A escavação fora um sucesso, mas o governo havia dado mais dois dias para deixarem o local, e eis que encontram uma nova capela. Possivelmente ainda ocorram novas descobertas.
Em apenas uma temporada, a equipe egípcia de Bubasteion encontrou mais de 3.100 artefatos únicos. Se a teoria a respeito da morte da família de Wahtye for provada, será o primeiro caso documentado de malária na história com mais de 1.000 anos. O filhote de leão encontrado foi confirmado como o primeiro leão mumificado já descoberto. O trabalho dos arqueólogos de Saqquara é um documento histórico e também uma demonstração do poder da ação do tempo. Mais do que isto, é uma grandiosa amostra de que o nosso passado não é tão diferente assim do nosso presente. Na viagem da vida, que para nós é de algumas décadas, cabe a cada um explorar os diferentes espaços e, certamente, um dia nós é que seremos objetos de estudos das sociedades que virão.
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