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Covid-19 - Uma história entre a vida e a morte (parte 1)

  • Foto do escritor: Daniel Trouche
    Daniel Trouche
  • 23 de nov. de 2020
  • 34 min de leitura

Atualizado: 12 de dez. de 2020


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Notas iniciais


Há quatro meses recebi alta do Hospital do Trabalhador, em Curitiba, onde estive internado por vinte dias devido à contaminação pela Covid-19. Desde então, a ideia de escrever um relato sobre essa experiência fez-se presente em meus dias de recuperação de diversas formas: no reaprender a viver, na troca de experiências com outros infectados das comunidades virtuais, mas, sobretudo, ao conversar com amigos e familiares. Nessas ocasiões, a recorrência psicológica costuma mexer com minhas emoções e, junto a elas, chegam memórias de momentos difíceis de traduzir, principalmente as que meu inconsciente projetou durante o período de intubação, de caráter lúgubre. Daí vem a alusão do título “entre a vida e a morte”.

Uma das perguntas mais feitas em relação a pandemia é sobre como o mundo funcionará após a vacina. Tudo voltará ao normal? Como a sociedade e os países se comportarão eu não sei, mas imagino que os milhões de infectados que estiveram entre a vida e a morte poderão despertar uma nova visão ou sentimento sobre suas vidas e como realizam suas escolhas. Em relação ao normal, espero com sinceridade que as coisas mudem. A intenção deste relato é participar outros infectados graves — pacientes de Covid-19 e de outras doenças — de que suas experiências podem e devem ser transformadoras. Por mais que ficar muito doente seja assustador, triste e fatal em alguns casos, sair vivo gera um potencial capaz de conduzir à superação de dificuldades. Minha intenção secundária é que as demais pessoas tomem conhecimento, ainda que não acreditem na seriedade do vírus ou das experiências de mente que irei relatar, acerca de uma leitura subjetiva da enfermidade. Nos dois capítulos sobre o processo de intubação, apresento meus sonhos e comentários inspirados na psicologia de C. G. Jung, por isso, a abordagem dessas ocorrências e suas realidades oníricas possuem uma leitura mais comum a filosofia oriental.

O leitor irá conhecer detalhes da minha experiência, cujo período abrange desde os dias dos sintomas iniciais, a confirmação da infecção e a aparente tranquilidade com que lidei com a febre alta e o cansaço, até o quadro evoluir impiedosamente para a SARA - Síndrome de Angústia Respiratória do Adulto. A SARA decorreu da lesão pulmonar aguda que infeccionara totalmente o meu pulmão direito. A partir dela, chegou o período em que fui submetido ao coma induzido, como ocorre com pacientes intubados que recebem sedação para permanecerem dormindo durante a evolução do quadro grave. Diante da impotência física em que me encontrava, emergiu uma miríade de medos e apegos que me trouxeram sufoco e desespero, transcorrendo sem pausa ao longo de doze dias dormindo. Se a hybris, minha “presunção”, excedera-se em disfarçada segurança vendo-se inabalável, o assumido daemon, o espírito, vestira-se como um camaleão, de modo a revelar os obstáculos protelados e não entendidos de minha vida. Como os gregos prenunciam, a hybris com frequência é punida.

A confirmação final quanto à escrita desta narrativa partiu do I Ching, o livro milenar de sabedoria e oráculo chinês, um clássico do taoísmo. Como lembra Jung, seu método atua em um campo expresso pela relativa simultaneidade dos eventos (em que o conceito de sincronicidade se aplica), “num paralelismo não explicável de forma causal”. A consulta realizada ao oráculo trouxe resposta benéfica, em tom de incentivo. Mais do que isto, indicou amplamente o exercício, que seria justo e traria o desfecho final de uma fase. “Para a superação do mal e a promoção do bem entre os homens”, apontou o I Ching, além de antecipar a necessidade de uma forte decisão interior aliada a um método de execução firme e claro. A base de sua cosmologia é a simbologia de yin e yang, o princípio da dualidade manifesto em todo o universo. Se logo após o período de coma induzido pude traduzir a experiência através de um despertar para a perspectiva do budismo tibetano, do bardo da vida e da morte — cujo reconhecimento do enfrentar a morte cultivo como um simples aprendiz respeitoso que tardou em encontrar a serenidade — o I Ching me instruiu acerca dos julgamentos, decisões e da imagem que a experiência de ser um caso grave e agora curado de Covid-19 trouxe à minha nova vida.

De acordo com a médica da UTI eu havia recebido uma nova vida. Uma que está apenas começando, que deve ser vivida com sinceridade e que tem como destino conservar os conselhos de firmeza e clareza sob o auspício da quietude. A subjetividade ocupa um lugar de honra nesta narrativa porque tem o poder e a capacidade de preencher uma mensagem que, de forma apenas objetiva, por meio das informações do prontuário médico, não poderia ser transmitida em sua integralidade. Espero ter cumprido esse objetivo do melhor modo possível, especialmente devido à dificuldade em que consiste a escrita sobre esse assunto, no qual se deve equilibrar a emoção e o pensamento. Quando a ação racional se torna intensa, o ponto da subjetividade perde-se com facilidade; eis um grande desafio para a vida humana.

Ao longo dos capítulos, busquei meditar antes de trazer à tona toda a experiência, sem deixar de fora algumas considerações sobre o que pude observar ao longo dos eventos. Os momentos de maior objetividade foram aplicados de maneira a pontuar corretamente a ordem dos acontecimentos, editar o texto com atitude lógica, a fim de facilitar sua leitura e compreensão, e, também, nos dois capítulos finais, que complementam a temática traçando um paralelo entre a pandemia, a negação da ciência e as fake news, a expectativa pela vacina e as perspectivas que se abrem para um mundo que clama por reinventar-se. A apresentação inicial fica por aqui e neste momento dá lugar à narração do relato, suas considerações e uma breve reflexão acerca da pandemia no Brasil.


Curitiba, 13 de novembro de 2020.



“Quando a diminuição alcança seu objetivo, um florescimento, sem dúvida, principia.” — (I Ching)




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PRESUNÇÃO


17 de junho. Rua Vicente Ciccarino — Acabara de partir da minha residência às 16h para uma corrida de rotina, como fazia em quase todas as tardes; segui em ritmo moderado até a ciclovia tangente à Flávio Dallegrave, em trote mais rápido até a Rua Simão Mansur, retornando pelo mesmo trajeto para casa. Era uma tarde como todas as outras naquelas semanas, exceto por meu vigor físico demonstrar-se alterado. Normalmente manteria uma corrida moderada até as proximidades de casa, mas me senti estranhamente cansado quando atingi o Bosque Dr. Martim Lutero, terminando o percurso em marcha lenta. A caminhada relaxada era um prazer que a preguiça nunca alcançava e, por isso, eu deveria estar bem.

Ao entardecer, após conferir um capítulo da série que acompanhava, desci até a sala para assistir ao telejornal com minha mãe. Eram duas as notícias da noite: escândalos políticos, a começar pela continuação do inquérito das fake news e o pedido negado de habeas corpus do ex-ministro da educação, Abraham Weintraub, pelo STF; e a pandemia do novo coronavírus, que registrara 1.269 mortes naquele dia, somando um número total de 46.510 em todo o país. A Covid-19 havia avisado a que vinha, embora muita gente não desse a mínima. Todos os dias, ela estava na telinha e também em meus pensamentos. Todos os dias, de Norte a Sul e em todos os estados, o assunto mais comentado era o novo coronavírus. Creio que não precisamos ser pessimistas acerca do ceticismo alheio, ainda que, em determinadas circunstâncias, seus posicionamentos sejam totalmente antagônicos em relação à nossa perspectiva. É preciso ter um pouco de amor por todos os que andam por aí como crianças distraídas ou sisudos demais, até porque há duas tendências que polarizam todos os aspectos da vida — que podem ser postuladas nos sentidos opostos de Norte a Sul, Leste e Oeste, frente e atrás; operam entre os sentimentos de amor e ódio, combatem entre ideologias neoliberais e progressistas, no aquecer e no esfriar — e para onde mais se dirija o olhar. Opõem-se em caráter e variam conforme o momento de cada indivíduo e de cada tempo ou espaço. Sempre haverá polaridade. É verdade que a postura caprichosa do mais bondoso e cuidadoso dos homens, por vezes, depara-se com o borbulhar do pessimismo e até do niilismo, ou do inconformismo diante da postura do negacionista diante da pandemia, mas a raiva, pelo que observo nas tendências que polarizam a sociedade, não é uma solução, é a condensação de uma emoção negativa que leva os homens de encontro ao próprio sofrimento. No rol dos extremos existenciais, a vida traz momentos distintos..., simplesmente existem. Alguns dias são tão fáceis e, se ao menos nos preparássemos para os difíceis, como os que eu passei adoecido, os momentos de antes do meu esgotamento físico poderiam ser melhor compreendidos. Nunca aceitamos, mas tudo deve terminar um dia da mesma forma como surgiu. Basta que se permita, aí não ficamos com aquela ideia de “e se eu tivesse feito diferente”. Me questionava, neste tempo, se o caos na pandemia seria mesmo fruto do negacionismo, apontado pela mídia e seus comentaristas, que denotava a negação de algo terrível que ocorria a olhos vistos. Estava inclinado a acreditar que seria mesmo isso, mas algo me dizia que poderia ser outra coisa. Adiante entrarei nessa questão.

Na manhã do dia seguinte, a fadiga do final da corrida ainda estava presente. Eu vinha de dias cansativos em que acompanhara meu pai durante sua internação hospitalar e não havia me recuperado, apenas parecia. Como é mais fácil seguir com a vida do que pensar em ideias incertas, chamei um motorista no aplicativo e fui encontrar minha irmã para emprestar seu carro; iria em vários lugares tratar de alguns assuntos do meu pai. Dia de sol, dia de chuva, é sempre dia de tráfego — e quem se importava se o coronavírus andava à solta. Após mais de duas horas rodando pelo Centro de Curitiba, retornei ao encontro de minha irmã, sem deixar de comentar que me sentia cansado. Ao longo da tarde, surgiu efetivamente o sinal de gripe com febre e, sem saber ao certo, dei como provável a infecção por Covid-19. Naquela tarde, liguei para o LANAC, Frischmann’s e outros laboratórios, que me informaram sobre os tipos de testes, que eram os de sangue, o PCR e outros com resultados rápidos, mas não tão exatos. O que vou fazer? — eu pensava. Se não me importasse, no sentido de ficar preocupado, pareceria um alienado, mas, se me importasse demais, tudo ficaria pior e, febril, me tranquei no quarto até chegar o dia seguinte, quando iria ao posto de saúde. Em anos anteriores, sofrera com febres altíssimas devido a inflamações na garganta e na faringe, a maioria delas sucedidas de refluxo gástrico, por isso acreditava que daria conta de mais essa, mas tinha medo de que, se estivesse mesmo com o novo coronavírus, pudesse transmiti-lo a meus familiares.

Após a enxurrada de explicações dos especialistas e das notícias sobre o vírus, sabia que haveriam riscos. A família coronavírus é perigosa, um grupinho conhecido desde os anos 1960 por causar infecções respiratórias moderadas em seres humanos e em animais. Alguns coronavírus, entretanto, como o SARS-COV, MERS-COV e SARS-COV2 (o novo coronavírus), podem ser graves: a doença é transmitida de pessoa para pessoa por gotículas respiratórias e por secreções que entram em contato com as nossas mãos. Era irônico observar que a proximidade entre as pessoas, justamente o que dava sentido à vida, era o que estava acabando com ela — e, de uma forma que não sabia explicar, alguma coisa muito errada era dada, muito além do vírus. Um caráter assustador vinha se desenvolvendo entre as pessoas que negavam o que a ciência dizia. Onde quer que se buscassem respostas a tantas questões acerca de onde havíamos falhado como humanidade, parecia não haver uma opinião dominante. O chocante não é saber realmente a resposta; o grosseiro é terem normalizado a calamidade pública na saúde de maneira a encarar a pandemia de forma apenas estatística, tendo a certeza de que o mal está lá fora, mas acreditando que ele não pode nos atingir.


Se você chegou até aqui, devo-lhe um mínimo de cordialidade, por isso, irei falar um pouco sobre quem sou. No começo, eu acreditava que haviam respostas seguras para tudo e, por um bom tempo, fui do tipo que queria saber sobre tudo. Tudo, desde o princípio. Quando criança, queria saber a respeito do que eventualmente todos nós pensamos um dia: de onde surgiu a vida, onde fica o começo e o que afinal estamos fazendo aqui. O significado da vida, seja para uma criança ou um idoso, trata-se de um enigma, especialmente quando observamos da maneira como fazemos em nosso cotidiano, mas também pode deixar de o ser quando olhamos para fora de nosso conteúdo, quando a vida apenas é a vida. Na adolescência, começamos a cair na real para o que virá pela frente. Nem todos, mas, para a maioria, após tirar os documentos de identidade, carteira de trabalho e título de eleitor, passar por provas e trabalhos intermináveis durante a fase colegial, o fluxo do que denominamos nossas vidas apresenta seus enigmas materiais. Como funciona a sociedade, o capital, a televisão e o rádio e por que os mais velhos parecem saber sobre tudo e nós (crianças) sobre nada? É uma fase difícil e a falta de conhecimento sempre me pareceu perturbadora. Quando a internet surgiu, eu tinha meus quatorze anos e foi libertador, uma maravilha em que eu poderia digitar qualquer coisa e alguma informação sempre apareceria no monitor. Atualmente, antes de completar a frase, o buscador já nos induz acerca de qual é a nossa busca, entretanto, será mesmo? Talvez esteja entre um caminho factual e uma manipulaçãozinha — e o que nós realmente estamos a buscar é algo a se pensar. O movimento dos dias mostra espectros do que queremos como se fossem as distintas matizes do pôr do sol, infinitas naquela meia horinha antes do anoitecer, — e eu também queria saber sobre coisas materiais e falar com as pessoas, o que acabou me levando a cursar Jornalismo.

Na faculdade, aprendemos a produzir reportagens, mas, antes disso, estudamos Comunicação Social, desde semiótica e as diferentes formas de linguagem até as teorias da comunicação. Com Max Weber, tomamos conhecimento da sociologia da imprensa e da comunicação; depois, a teoria hipodérmica analisa a mídia a partir de um prisma behaviorista, seguindo por uma infinidade de teorias… Teoria dos efeitos limitados, Teoria Funcionalista, Teoria empírica, até o dia em que conheci a Teoria Crítica, e, neste dia, foi como se uma luz tivesse ascendido. Fazia todo sentido a compreensão de que a produção midiática era uma espécie de fruto proibido da era capitalista e todos adoravam dar uma mordida. A indústria cultural norte-americana, em especial o cinema e a música, logo surgiam como um modelo de sucesso comercial estrondoso, e o mundo inteiro se rendeu ao potencial da mass media. Percebi que pensar fora das convenções sociais não seria fácil, mas Walter Benjamin me mostrou que qualquer ilusão acerca de mudar o mundo seria mesmo apenas uma ilusão. O bom negócio é mudar nossa própria vida e a dos que nos cercam. É nesse intuito, por conseguinte, que atribuo este humilde relato. Voltando às teorias da comunicação, passamos, é claro, pelo new journalism, época em que tomei conhecimento de alguns jornalistas autores de literatura que obtiveram prestígio, como Tom Wolfe e Truman Capote, com o seu A sangue frio. Estampavam o realismo social de forma vibrante, com a construção de cenas e diálogos em que o narrador costura um pano de fundo tão verdadeiro para o leitor que este capta o sentimento da construção bem amarrada, como se fosse sua própria vida. Como na juventude deparamo-nos, fatalmente, com o tédio, também apreciei o jornalismo gonzo. Este não chegou através da faculdade. Imaginem a recepção que a leitura de A grande caçada aos tubarões, de H. Thompson, teria no meio acadêmico... com muitos jovens e muitos bares. Não! Uma narrativa jornalística cujo narrador a certa altura abandona completamente os fatos objetivos e a seriedade da coisa toda para se misturar com a história não é a ética que buscamos na academia, mas é na sociedade? — podemos nos questionar. Por algum motivo, a revista Rolling Stones amava H. Thompson. A compreensão de que a notícia poderia ser criada, paradoxalmente, não está tão distante do que acontece hoje com uma estética empobrecida e descaradamente anti-intelectual. Não me refiro à mídia tradicional, mas a mídia social.

Recentemente, em entrevista ao doutor Táki Cordás, a semiologista e professora Maria Lúcia Santaela afirmou que a consciência humana nasce da linguagem. “Só que Heidegger mostrou para nós que a consciência é a consciência da morte”, disse ela, trazendo uma analogia sobre a forma como a fotografia provocou mais impacto do que todas as outras transformações de linguagem que vieram depois. Se compreendermos os vídeos como uma extensão, realmente é onde nos encontramos atualmente, em especial nas mídias sociais. Inclusive, esta entrevista foi feita em uma live no Instagram. Depois da criação da máquina fotográfica o homem pôde congelar um momento e encontrou uma forma de eternizar um fragmento da vida. Posteriormente, a realidade teria sido povoada por “duplos”, que segundo a professora, não se trata do que vemos, mas da maneira como vemos a nós mesmos. “O instante que foi capturado morreu para sempre. A vida está grávida de morte a cada minuto que ela passa”. Mais adiante, com a exposição de minha infecção pelo novo coronavírus, entrarei nesta questão com o auxílio da psicologia. Eu não penso exatamente como a professora, que nossa consciência nasce da linguagem, acho que esta é uma perspectiva muito sólida, mas não a vejo como a antologia do ser, embora admire a busca pelos fundamentos da essência da verdade de Martin Heidegger.


Em princípio, eu pensei em escrever uma carta endereçada à Covid-19 ou a morte; seria como uma história entre nós, contudo, há coisas que não merecem ser romantizadas, apenas encaradas com o máximo de sinceridade. Confidencio a vocês que devo, na realidade creio que nós devemos repensar o conteúdo que consumimos e como o dotamos de verdade. Já observou como as nossas vidas podem se tornar uma mensagem criada por outros ou por nós mesmos? É importante pensar nisto, pois encontramos aí os reais problemas que podemos superar através de um melhor direcionamento da consciência. A felicidade e o significado da vida dependem disto, e voltaremos ao tema. Lembro que não é preciso concordar com todas as ideias que apresentarei, basta que se leve em consideração sua existência.

Não podemos afirmar que a consciência humana esteja alerta, a estética atual é a da pós-verdade e das fake news, que não são verdadeiras ou objetivas. Eu preferiria até que fossem como no jornalismo gonzo, cujas possibilidades simbólicas de obtenção de conhecimento são vastas. Vivemos uma triste fatalidade, em especial no âmbito da saúde, e é impossível não ver que a nossa cultura chora. É bem ao modo como composto em O Bêbado e a Equilibrista, música de Aldir Blanc e João Bosco.


Que sonha com a volta do irmão do Henfil

Com tanta gente que partiu

Num rabo de foguete

Chora

A nossa Pátria mãe gentil

Choram Marias e Clarisses

No solo do Brasil.


A Covid-19 levara Aldir Blanc, quadro de pneumonia e infecção, e Ciro Pessoa, no mês anterior, além de muitos outros artistas. O sentimento decadente que tomou conta do país e do mundo, com tantas mortes e muitas outras por vir, trazia respostas pequenas demais. Muitas vezes me peguei pensando o que poderia ser pior do que uma pandemia incontrolável, afinal, uma pandemia é um fenômeno que atinge as vidas e traz sofrimento incalculável, mas um dia termina. Já o descaso com a vida da pessoas... Esse não se dava apenas pela negligência das grandes economias que não investiram suficientemente em estudos sobre as mutações gripais, sendo elas previstas por virologistas como eventos prováveis — tinha algo a mais. Eu entendia que em 1918 durante a gripe espanhola a gravidade da epidemia fosse negada. Segundo os americanos, ela era uma arma alemã para acabar com o seu exército, e no final quem levou a fama foi a Espanha. Por não tomar partido naquela I Guerra o país tinha uma imprensa livre e noticiava as mortes, e assim acabou entrando para a história como a pátria da gripe mais mortífera da história: a Gripe Espanhola. Um século atrás as pessoas acreditavam mesmo em tudo o que o governo noticiava, é compreensível, mas em plena era da informação..., por quê cegamos, José?


19 de junho. Em casa — Dormi mal durante a noite. Em estado febril não há quem se sinta bem-disposto, mas de maneira geral eu era forte e o bom condicionamento físico me permitiria melhorar — era o que acreditava apesar de tudo. Ao amanhecer liguei para minha mãe e irmã avisando que precisava ir ao posto de saúde para observação. Minha febre estava na casa dos 37°C, havia tontura leve e coriza. Após a consulta retornei com os medicamentos azitromicina 500mg, para ser tomada por cinco dias, oseltamivir 75mg, por cinco dias, além de dipirona e paracetamol para a febre. Fui bem atendido no posto de saúde, mas estranhei por não receber o teste para Covid-19 mesmo que a partir daquele momento estivesse legalmente obrigado a cumprir quatorze dias de quarentena em casa. Adverti que faria o teste em laboratório particular, e com isto recebi a receita para realizar o exame PCR, que só era realizado com solicitação médica. Ao deixar o posto de saúde com as medicações também recebi uma carta de recomendações da Prefeitura, com a seguinte anotação: “A partir de agora você encontra-se em quarentena de 14 dias e os seus contatos domiciliares por 7 dias se assintomáticos e 14 dias se tiverem sintomas respiratórios leves ou não. Você deve buscar ajuda e sair de casa somente se houver piora do quadro, com falta de ar, sabendo que o número do SAMU é 192, que terá implicações legais no caso de após declarada quarentena você for encontrado em locais públicos e ou aglomerações. Mesmo que na sua casa, não receba visitas”.

Era uma sexta-feira e eu havia efetivamente sextado! De posse da requisição e trancado em meu quarto marquei o teste no Frischmann’s. Só havia agenda para a segunda-feira e levariam três dias para sair o resultado; uma eternidade para quem entra neste fluxo dificultoso de estar gripado e com febre durante uma pandemia perigosa. Eu não deixaria tão cedo o meu quarto, ali receberia as refeições e só sairia para fazer o teste. No sábado acordei bem, esperava assistir filmes e ler. A vida de contaminado não seria assim tão ruim, só teria que aguentar quatorze dias fechado; recebia pão com margarina e suco na bandeja normalmente trazidos por meu irmão, que ainda fazia a farmácia e comprava chocolates, bolachas e outras coisas que eu pedia — e ainda vinha almoço e jantar na bandeja. Quantas pessoas não topariam qualquer coisa para ter um quarto e receber tudo na bandeja? Os eventos podem ser contraditórios, pois com o passar das horas minha indisposição foi aumentando de modo rápido e pensei que ninguém trocaria de lugar em sã consciência. Ler era impraticável, me cansava e dava tontura. Assistir um filme ou uma série eu conseguia, mas não era nada parecido com maratonar a tarde toda, o que teria sido fácil. Minha disposição era de cinquenta minutos, o tempo de apenas um episódio, e depois sentia uma espécie de enjoo crescente, além de tontura e ardência nos olhos. Nesses momentos eu ficava deitado buscando relaxar a mente, pacificar os pensamentos, e certa vez lembrei do ensinamento budista sobre a impermanência e a natureza transitória de todas as coisas. Com o coronavírus seria igual. E me mantive com a mente razoavelmente tranquila, mas ficar muito tempo deitado trazia desconforto físico, já que tinha dores nas costas e espasmos nas pernas. Em breves momentos me sentava na cadeira olhando pela janela, o que aliviava a moléstia. Ouvir o canto dos pássaros e acompanhar a luminosidade do sol se alternando entre manhã e noite foi terapêutico durante este final de semana. Minha temperatura corporal oscilava entre 37,5º e 39º, moldando uma rotina entre controlar o horário do antitérmico, tomar remédios e banho. Assim segui até a segunda-feira seguinte.

Desde a chegada do vírus ao Brasil eu vivia em semiquarentena em casa, saindo apenas para as minhas corridas. Eram tempos reflexivos em que lia ou assistia filmes e séries. Revira Morangos Silvestres do Bergman, Asas dos Desejos do Wenders, The Lighthouse do Eggers, apreciara pintores de Escher a Pollock, mas ao olhar a política refletia sobre a incoerência humana. É fácil apontar os desmandes dos políticos, mas há certa política em que todos estamos envolvidos, e meu entendimento vinha cada vez mais apontando para esta ferida que ninguém aprecia olhar. Afinal, somos humanos, não é mesmo? Pois é, somos mesmo, e esse mal só não é permanente quando o olhamos incansavelmente sob diferentes ângulos, até que ele possa ser observado por uma lente não personalista. Nesse tempo eu ainda me incomodava com o silêncio de quem sabia que havia algo errado em termos políticos. Pudera, não sabia realmente o que significava o silêncio além do autobenefício pacificador, de forma que me parecia mesmo que a loucura havia sido democratizada. Não perdoava a apatia diante do desastre que observava na política e na saúde pública. Quando percebia que era inútil remoer, buscava consolo nos mestres das artes e da literatura. Durante a quarentena li diferentes abordagens que tocavam as ambiguidades que eu vinha sentindo: refleti nos dias de nada e na fugacidade apontadas por Clarice Lispector, nos valores modernos de Shakespeare, na perspectiva da originação dependente do budismo tibetano de Lama Samten, e no hermetismo da existência mental do Caibalion. Só não fazia ideia que o Oráculo da Noite, de Sidarta Ribeiro ou as Caixas de Pássaros, de Malerman, e suas representações, seriam lastimavelmente urgentes em minha vida. Sabemos que dentro de poucos dias eu estaria sonhando perpetuamente, em coma, como um sonâmbulo caminhando sem ver.

22 de junho — A caminho do laboratório. Acordei mais disposto neste dia e estava sem febre, por isto achei por bem ir sozinho. Ao sair do carro percebi que “normal” não estava, e chegando ao laboratório avistei, logo na entrada, em torno de dez pessoas entre possíveis contaminados e seus acompanhantes amontoados de pé no lado de fora. Havia um atraso de mais de vinte minutos e sequer tinham cadeiras para as pessoas esperarem. Apesar do inverno o sol começou a esquentar e após cinco minutos em pé me senti tonto e enjoado, com um leve formigamento pelo corpo todo. Informei a atendente que precisaria aguardar dentro do carro. Ali fiquei melhor quando, por fim, faltavam cinco minutos para a hora prevista e voltei à porta, que logo foi aberta. Estava na expectativa pela chamada de meu nome e minha condição e ânimo eram rapidamente deteriorados, mas fui frustrado e tive que esperar mais um pouco — quem adentrou no local foi uma mulher de seus quarenta anos. A náusea voltou e me sentei em uma banqueta que alguém havia trazido, quando a porta se abriu novamente. Dessa vez, enfim, faria o exame, mas não era a minha vez. A apreensão de todos ao redor ficava cada vez mais evidente com suas cabeças abaixadas e olhares perdidos, explicitando o mal-estar; pudera, deveriam ter muitos contaminados e nitidamente eu era o de pior estado. Na terceira vez em que a porta se abriu finalmente foi a minha vez, e me encaminharam até a recepção onde confirmei os dados e realizei o pagamento de 340,00 para confirmar que estaria com aquilo que já tinha certeza estar. Contaminado!

Entrei em uma pequena cabine fechada por cortinas onde uma jovem informou que o exame seria desconfortável, mas rápido. Um cotonete largo foi introduzido em minha narina, parecia não ter fim. Quanto mais entrava pior me sentia, até que penetrou dentro da minha cabeça; neste instante eu não pensava em mais nada, só havia o cotonete dentro da minha mente. Posteriormente, o retirou. Fez desaparecer com mãos ágeis e dedos habilidosos que o guardaram em um recipiente ao lado. “Agora vamos fazer na garganta” — disse a atendente. Eu não sabia que teria mais esta, mas tinha e um palito foi introduzido no fundo, até eu sentir uma leve náusea, e estava feito. O resultado sairia em três dias, bastaria consultar pela internet.

Quando saí do laboratório meu rosto deveria estar azul, verde ou qualquer outra cor que não fosse a minha — mantive um exercício respiratório contando os segundos para aguentar o enjoo. “Se eu sentir tontura tenho que encostar o carro e ligar para virem me buscar” — pensei preocupado, mas sentado me sentia melhor e, lentamente, voltei para casa. Na Vicente Ciccarino alguns motoristas buzinavam porque conduzia a 40km/h, mas logo cheguei em casa, o que me deu um grande alivio e rapidamente, à distância, falei com minha mãe. Já desconfiava que a febre havia voltado com intensidade, e tinha mesmo. Passava dos 38ºC. Tomei os remédios e almocei, mas a febre aumentou — ao checar constatei 39,6º.

“A febre aumentou. Sim, tomei o remédio. Vamos trocar o paracetamol pela dipirona”, conversamos por telefone. Nenhuma melhora ocorria e eu tomava antitérmicos a cada cinco horas.

— Você precisa tomar um banho frio ou ir ao médico — disse minha mãe. Preferi encarar o banho frio por dez minutos. “Ao menos a febra irá diminuir” — imaginei, mas atenuou para 39ºC apenas. Naquele instante eu perdia as esperanças com o banho frio e me sentia frustrado pelo mal-estar, pela excessiva decrepitude física que ia se instalando sem que pudesse fazer nada para sair daquela limitação. Dali a quarenta minutos a temperatura avançou para 39,5º, e passei a usar permanentemente uma toalha molhada para refrescar o rosto. A certa altura ajudou a reduzir a temperatura para 37,5º, desta maneira fiquei fazendo um malabarismo durante os dias que se seguiram.

Na terça-feira surgiu uma macha vermelha em minha perna, era uma alergia; na quarta-feira o enjoo se tornou terrível, e eu não suportava ficar sentado mais do que dez minutos. Nesse dia passei a tomar bromoprida para a náusea e recebi uma ligação de Secretaria da Saúde. O enjoo era normal devido aos remédios. “Aguente até o fim da medicação e ligue ou chame o SAMU se sentir falta de ar” — disseram no telefone. Eu acreditei piamente, afinal, o vírus é forte mesmo para algumas pessoas; depois conversei com um amigo que sabia da minha situação. Com a voz definhando e as tosses frequentes, avisei que estava mal e o exame sairia no dia seguinte apenas. E quando saiu confirmou que era positivo. Me bati na leitura. Estava tonto e liguei para o laboratório buscando entender o resultado, mas não tinham pessoal para me ajudar — só tive certeza através da leitura de uma prima médica. De toda a minha trajetória de contaminado em casa este foi o pior dia, mas passaria. O medo não era natural, mas eu sabia que não ia bem. Apenas estava ali e a família preocupada falava para voltar ao médico, até que garanti que se na manhã seguinte não estivesse melhor, eu voltaria ao posto de saúde.

25 de junho. “Preciso de um médico” — Acordei decidido em buscar ajuda. Minha irmã havia passado a noite em claro porque levara meu pai para o hospital na madrugada anterior. Tinha retornado a pouco tempo, e em seguida me levou ao posto de saúde. Eu parecia razoável e a febre estava em 37,5ºC, o que era excelente em relação aos outros dias. Ela guiava o carro pela Av. Canadá e eu sentia o vento bater no rosto, me permitindo respirar melhor. Havia certa melancolia no ar e percebi sua feição cansada, apreensiva, como se alguma ameaça maior estivesse presente. Chegamos a unidade de saúde e lá fui atendido pelas mesmas enfermeiras que haviam me recebido na área de Covid — não precisei esperar mais do que cinco minutos.

A atendente anunciou que deveria ter ligado para o Samu, pois estava com aviso de quarentena e não poderia sair de casa. Informei-as que o teste dera positivo, era meu último dia de medicação e estivera mal durante os últimos dias. A médica, bastante jovem e com um olhar tranquilo, me atendeu; pensei que receberia novos medicamentos, talvez mais fortes, e retornaria logo para casa; contudo, o atendimento apresentou algo novo. Em poucos minutos fui conduzido para outro assento e informaram que minha oxigenação havia caído. Precisaria receber oxigênio. A febre mais baixa me fez acreditar que talvez uma bombinha de ar fosse o suficiente para voltar para casa, e a seguir minha irmã surgiu na porta da sala e me viu com o cateter. Logo quis saber as informações todas e eu não lembro bem o que disse, mas vi a médica ao telefone. Subitamente percebi no olhar das enfermeiras um tom acima de seriedade, algo estava mesmo acontecendo. Pela primeira vez me senti preocupado e antes que me ocorressem pensamentos a médica voltou e disse: Você precisa ser internado!


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Internação


25 de junho. Posto de saúde — Doutora Camila explicou que minha saturação de oxigênio no sangue tinha caído para 88%, desta forma só restava a alternativa da atenção hospitalar. A notícia foi chocante e inesperada, minutos antes estava certo que voltaria para casa. Negar a fraqueza que enfrentava diante da diminuição inescapável, subitamente, perdera o sentido; a sensação de controle e segurança não passavam de uma aparência e apesar de manter a tranquilidade, percebi que especialmente nos últimos dias andara me iludindo sobre minha saúde. Tardei anos da vida adulta até tomar consciência que minha confiança simplória fora uma tentativa esgotada. Alguns de nós carregam crenças e certezas como se fossem condecorações obtidas com grande esforço, alimentando o nosso orgulho. Orgulho é uma qualidade ou um defeito? Se forem ambas as coisas, como a repetição e a alternância entre yin e yang a revelar a dualidade, quando nos enchemos de tal substância o que vem em seguida é o seu esvaziamento. Uma ambulância estava chegando para me levar até a unidade de pronto atendimento para os primeiros cuidados, e de lá partiria para um hospital a ser definido. Uma dupla de socorristas que fazia apenas translado entre unidades de saúde e hospitais me locomoveu, e em dez minutos era atendido por um médico na unidade de pronto atendimento. Minha irmã seguiu de carro, queria aguardar a informação sobre o hospital que seria internado, mas logo a informei que não adiantaria esperar, ainda ficaria algumas horas por lá.

“Você está com 37,5ºC. Me fale o que está sentindo, onde dói?” — perguntou o médico.

Eu estava cada vez mais fraco, com dores nas costas e na cabeça. Logo em seguida ele me encaminhou para o exame de radiografia, e depois fui alojado em uma imensa barraca de campanha da Defesa Civil, no lado de fora, onde sentei em uma cadeira solitária. Estava isolado de todos e me sentia como um tipo de condenado, sem estro poético ou forças para despachar o momento duvidoso. Assistia o desvanecer de minha energia através dos olhos —flamejantes — que afundavam no rosto como duas pedras vulcânicas carbonizando os sentidos; o vento entrava na barraca, e eu sentia um frio conjugado à frieza daquele que parecia ser um interminável ensaio da loucura. A febre aumentava e se ninguém viesse eu teria que pedir socorro dentro do pronto atendimento. Eu, que apreciava tanto os momentos sozinho e as reflexões e prazeres de estar em silêncio, permanecia ali, escutando o som do vento entrar na barraca. Me mantive firme e conheci um imenso vazio que mostrou todas as incertezas do mundo. Em dez minutos me buscaram. O médico estava com o resultado do raio-X e me analisou com a expressão séria e cansada, repetindo todas as perguntas que já havia feito. Disse que eu estava com alguma coisa no pulmão. Seu olhar sério demonstrou algum tipo de suavidade quando falou que iriam, em breve, acertar um leito hospitalar. A cena ficou marcada em meu subconsciente e retornaria nos sonhos, enquanto isto realizei novamente o incomodo exame do cotonete. Nessa ocasião não senti náusea e mal percebi o que fizeram; em seguida fui transferido para um leito de enfermaria.

O fato da doença correr livremente e as pessoas não se preocuparem, de maneira geral, é um tipo de condenação. Eu sentia desta forma, como se o céu despencasse uma chuva duvidosa que caía há anos, sem previsão para nos deixar e sem razão para continuar. Muitos não sabem que a sua vez está chegando, e não importa qual será a via; pode ser a qualquer hora ou demorar muitos anos, no entanto, continuam fazendo as mesmas coisas como se a vida não pudesse ser diferente. Agem como condenados! Os pacientes que estavam comigo eram estas pessoas e eu também. De nada adiantara meu semi-isolamento, era mais um infectado entrando no sistema público de saúde, mais um contagiado na estatística oficial, mais um paciente, uma das numerosas pessoas que viraram do avesso a rotina e a vida dos médicos e enfermeiros que atuam no atendimento de Covid-19, sem falar na vida dos familiares. No quarto haviam outros dois infectados e uma enfermeira; ela não estava com o rosto atormentado e o olhar assustado como os que vira anteriormente. Parecia mais leve e respondia às perguntas com bom humor. Recebi dela as primeiras medicações, o cateter de oxigênio foi regulado e deitei na cama, onde almocei e permaneci aguardando. Com o passar do tempo veio o aumento do cansaço. A enfermeira me cobriu e disse que minha vaga estava saindo; possivelmente seria no Hospital do Trabalhador. Em seguida um dos pacientes recebeu alta, apenas fora receber oxigênio e já estava livre para voltar para sua casa — a cena me pareceu profundamente distante, como se meu caminho não pudesse mais ser este. Todo tipo de sentimento por trás da aparência serena começou a brotar dentro de mim, isto que eu mal imaginava o que viria pela frente. O paciente do O2 despediu-se e desejou boa sorte, enquanto o outro dormia profundamente. A febre certamente havia passado e um forte sono se apresentava, e quase me derrubava quando entraram dois socorristas com uma maca de resgate e o homem perguntou:

— Você é o Daniel Seleme Trouche?

— Sim, aguardo a liberação de um leito.

— Viemos para te levar. Já tem um leito no Hospital do Trabalhador.

A enfermeira piscou os olhos confirmando e eles me acomodaram na maca, transferindo o cateter para um cilindro de O2 que acomodaram entre minhas pernas; em seguida eu passeava pela UPA na maca e percebia claramente a palidez das paredes e os silêncios acuados dos enfermeiros que andavam com rostos exauridos. O ambiente como um todo parecia pesado demais, e foi assim que me despedi, em sinal de respeito por tudo o que eles ainda passariam por muitos meses. Se há heróis no mundo real, eles estão mais próximos do que imaginamos.

O que enfrentaria estava à minha espera, e próximo. O socorrista me encaixou no compartimento da ambulância e sua parceira foi a meu lado. Ela falava o tempo todo. Queria saber se o oxigênio estava bom e como me sentia a cada parada. Eu confirmava estar indo bem, mas sentia por passar em poucas horas de alguém que pensava estar voltando para casa, para um paciente internado por tempo indeterminado. Ela contou que também tinha medo de ser infectada. Ao menos seu rosto era mais leve do que os da UPA, era uma mulher de grande vitalidade sem dúvidas, e ouvi sobre sua preocupação com as mutações do vírus. “Acho que essa máscara veio para ficar” — disse, informando que tinha pacientes para transferir durante o dia todo. “O número de casos em Curitiba está aumentando. Assim como você muitos estão passando pela mesma coisa, mas se considere com sorte. Você está indo para um dos centros de referência de Covid”. Sentia não ter mais forças para me manter de pé se fosse necessário, e pelo tipo de atendimento que me era dado, a julgar pela docilidade, meu estado deveria ser penoso. Chovia em Curitiba e eu observava pela janela de trás o trânsito se formando, uma imagem que mais parecia com um sonho lúcido meio borrado, alternando passagens em câmera lenta e silêncios de apreensão. O socorrista que dirigia também falava comigo, mas não conseguia o ouvir direito, apenas via borrões pela janela e ponderava que ainda teria que falar com médicos e enfermeiras. O dia ainda seria longo, mas eu só queria descansar.


Fui internado no Hospital do Trabalhador às 17h23. Os socorristas conheciam bem os labirintos dentro do hospital, e me levaram por muitos corredores até chegar em um pequeno quarto onde uma enfermeira estava à minha espera. Falava bastante e, bem-humorada, contou como era bonita a coloração do sangue retirado da artéria, mas infelizmente eu sentiria dor. “Você vai ver, é um vermelho diferente”. Se tratava do exame de gasometria arterial, seria uma rotina durante os próximos dias. Sua finalidade é medir a taxa de oxigênio no sangue, porém é feita através da coleta de sangue por uma seringa, com a vantagem da exatidão dos níveis de saturação do oxigênio em relação ao uso do oxímetro digital, que também esteve comigo ao longo da internação. Além disso, a gasometria fornece a quantidade de gás carbônico, o pH ou quantidade de ácidos e bicarbonato no sangue. A retirada foi dolorosa, mas ela me distraiu bem com a conversa da cor do sangue, e suportei a dor. Nesse dia a evolução de meu prontuário apontou sintomas de febre, tosse, dispneia e dores no corpo, além da baixa saturação de oxigênio no sangue suavizada através do O2 que recebia em meu isolamento. Foi realizada tomografia de tórax, exames laboratoriais e a medicação iniciou com ceftriaxona, tamiflu e azitromicina.

26 de junho. Segundo dia de internação — A manhã começou com piora na dispneia, aumento de tosse e redução de apetite. A medicação e o cateter nasal elevaram minha oxidação a 94% com 2l/min, mas foi orientado prona, a posição de bruços indicada para melhora da oxigenação dos pulmões — e suspenderam a ceftriaxona. Uma rotina de medicações e radiografias seguiriam pelas próximas 48 horas. Seriam decisivas. Eu tenho poucas lembranças deste período. Por mais que ao longo do relato tenha reativado algumas memórias e revivido emoções, apenas me lembro de alguns flashes de momentos decisivos que juntamente as mensagens trocadas com minha mãe e o que a psicóloga contou posteriormente, além do prontuário médico, consigo ter como ideia geral. O fato é que estava fraco demais para pensar ou lembrar. Recebia mensagens pedindo para que ligasse em casa dando notícias, mas respondia apenas com frases curtas, dizendo que era bem atendido. Ficou difícil falar devido à falta de ar, além de uma absoluta ausência de disposição em me comunicar. “Vou ficar sem bateria e não consigo nem carregar o telefone. Não posso sair da cama. Uma vez ao dia tento dar informações” — respondia. A atualização de notícias era feita entre alguém da equipe médica e minha mãe. Se quando eu ainda tinha forças para andar a sensação já era de fraqueza, àquela altura estava completamente entregue aos cuidados médicos e ao meu destino. Depois realizaram um novo exame PCR, meu terceiro; no dia seguinte, antes que estivessem completas 48 horas da internação, enviei mensagem para casa falando que meu caso era moderado. Pela contagem dos dias estaria passando pelo auge da contaminação. “Não precisarei ser intubado, provavelmente estarei melhor na próxima semana” — anunciei por mensagem.

Às 16 horas a enfermaria apontou uma intercorrência, eu estava dispneico com aumento de esforço para respirar e não conseguia ficar confortável na posição prona. Às 21h houve uma nova intercorrência na enfermaria com piora na minha saturação e, enfim, veio a solicitação médica para internamento em UTI. Ocasiões com uma elevada importância funcionam como gatilhos mentais, — a mera menção a uma imagem que o simbolize com originalidade, o aciona — foi exatamente assim no momento em que a doutora me explicou que para melhorar eu precisaria ser intubado. Estava com 50% da capacidade pulmonar, o vírus não cedeu e a situação ficou perigosa. Enquanto estava em casa, antes de adoecer, as imagens dos pacientes de UTI me arrepiavam. Imaginava como seria desconfortável a intubação orotraqueal: passar dias ligado ao respirador mantendo garganta abaixo um tubo que o liga a ventilação mecânica, sem nada poder fazer. Nesse momento há dois modos de estar: on (vivo) ou off (morto). Eu nem lia muito a respeito, era um tema desagradável entre tantos assuntos intragáveis que vinham ocorrendo todos os dias. Acompanhei a explicação médica e, a cada frase ouvida, significava uma pergunta que deixaria de fazer. Como a explicação não deixava brechas para um “e se” ou “será que não podemos esperar mais um pouco”, fiquei sem palavras. Ainda assim, quando a médica quis saber se tinha dúvidas, com uma lágrima congelada nos olhos perguntei:

— Vou sentir? Terei alguma consciência?

— Vai ser como um sonho — respondeu.

Ela ligou para minha mãe dando as mesmas explicações, e passou o telefone para que eu falasse, mas não tinha o que dizer. Eu mal pensava direito, estava já como um velho corpo encostado no barranco, apenas aguardando a chegada da minha hora.

— Se tem que ser feito é melhor fazer logo mãe — disse a ela.

Tudo ficaria bem, aquiescemos, e a partir dali dias de espera e incertezas tomariam conta de seus pensamentos. Ainda hoje tenho a sensação de que uma borracha foi passada por cima da minha vida, e tudo o que tenho ou lembro é parte de uma reconstrução. Se eu não sentia dor ou o medo ainda não se instalara em meus pensamentos devia ser por ação de alguma força benévola, pura, que para mim era representada nas pessoas que me atendiam. Foram facilitadores de um processo difícil. Logo chegaria o momento em que eles não conseguiriam mais falar comigo para transmitir esta cordialidade entre profissional de atendimento e paciente. Vi muitos casos assim, e possam estar certos de que esta camaradagem alimenta o paciente em disposição para encarar os perigos.

Às 22 horas dei entrada na UTI 1 de Covid-19, e não haviam outros pacientes. Deveria ser uma antessala preparatória onde tinham muitas luzes, e logo fui apresentado à equipe de enfermagem e ao médico de plantão. Ao mesmo tempo em que eram atenciosos eles colocavam medidores pelo meu corpo e me preparavam para a intubação, que deveria ser imediata. Soube que até chegar a hora estaria dormindo, o que foi um alívio. Conversamos sobre como me sentia, mas foram se retirando do círculo que me envolvera, ficando apenas a chefe de enfermagem, que disse que estariam ao lado. Bastaria eu chamar que alguém viria, entretanto, teria que ficar deitado de bruços, a posição prona.

— Podemos te virar? — ela perguntou.

— Eu não aguento ficar muito tempo de bruços.

A enfermeira não deveria ter esperado por esta resposta, afinal, aquilo era tão normal e evidente aos pacientes.

— Por quê, sente muita dor? — questionou.

— Não é a dor, é que não sou acostumado, nunca fico assim.

Durante as vezes que tinha tentado a posição sempre tivera dificuldades, e já havia me queixado anteriormente na enfermaria.

— Então vamos combinar que você vai ficar um tempo de bruços e quando melhorar sua oxigenação nós te viramos de lado — disse.

— Por quanto tempo? — quis saber.

— Se você aguentar trinta minutos vai fazer muita diferença. É importante!

O que eu poderia falar? Não, por favor, não quero! Não parecia viável. A técnica é eficaz em doenças respiratórias graves e milhares de pacientes, em todo o Brasil, deveriam estar na mesma posição. Em casos mais graves o novo coronavírus chega aos alvéolos pulmonares (pequenas bolsas de ar alojadas no pulmão), responsáveis pela troca gasosa que oxigena o sangue. O processo inflamatório decorre do próprio corpo, podendo preencher os alvéolos com líquido, gerando uma severa pneumonia. Minha anamnese pré-intubação registrou tosse seca, febre alta e persistente, e coriza hialina acompanhada de diarreia sem sinais enteroinvasivos. “Paciente evoluiu com taquidispnéia e dessaturação, apresentando FR 35 iprm, Sat O2 85% em AA e febre 38ºC, em quadro de insuficiência respiratória aguda”. A saturação normal de oxigênio é acima de 94%, quando está abaixo de 90% normalmente indica presença de alguma doença, como é o caso da pneumonia. Esse era o meu caso, e havia tomado todo o meu pulmão direito. O iprm mensura o número de incursões respiratórias em um minuto, o valor normal nos adultos varia entre 12 e 20 incursões. A frequência respiratória (FR) 35 iprm significa respirações curtas que para oxigenar ocorrem mais vezes por minuto. Além do ceftriaxone e do tamiflu, passei a receber dexametasona e drogas vasoativas por instabilidade hemodinâmica, o termo reporta uma pressão arterial persistentemente instável. Como se não bastasse eu estar virado de bruços a cama tinha uma inclinação de 30º. Parecia impossível manter-me deitado daquele jeito. Se não me virei de lado por conta própria foi porque não conseguia fazer o movimento sozinho. Durante esse tempo eu contraía a musculatura das costas a cada minuto, e deveriam ter passado dez minutos quando solicitei ajuda.

— Não aguento mais. Por favor, me virem — pedi.

A enfermeira voltou, analisou minha respiração, os batimentos cardíacos e percebeu que eu estava no limite.

— Está bem! Já iremos te sedar, agora você vai descansar.

Logo eu estaria apagado.


A vida é cheia de surpresas e repleta de objetivos que passam batidos. Qual a razão de vivermos? Qual é a razão do pensamento? Nós entramos em contato com múltiplas áreas da sociedade como a educação, o trabalho, os relacionamentos e, quando percebemos, temos uma história que parece tomar caminhos diferentes do que normalmente imaginamos. O que não podemos dizer é que sejam menos relevantes; ao contrário, como parte de nossa formação é bom que as coisas fujam ao controle, caso contrário seríamos tão mecânicos quanto um respirador. Nosso corpo se assemelha a uma máquina, inspira a análise dos cientistas, mas não é apenas uma máquina biológica baseada em equações matemáticas, embora execute com perfeição suas funções orgânicas. Podemos criar modelos e palavras para tudo, embalá-los em um rótulo e dizer que o que descobrimos acerca de qualquer coisa é aquela coisa. Um equívoco — se me permitem — apenas alcançado por uma civilização que vive uma era pós-descobertas, ainda muito impressionada com o que os gênios do passado criaram, ainda orgulhosa de um saber recém iniciado. O entendimento da vida baseado puramente na matéria creio que seja uma antítese filosófica comparando-se ao que os pensadores dos últimos séculos falaram e grafaram em livros que são a base do saber moderno, o que é paradoxal. Talvez seja necessário mais do que desenvoltura para transitar em diferentes áreas do conhecimento sem cometer o erro de acreditar apenas em nossas próprias ideias. É preciso antes abrir mão do nosso pequeno saber e, pouco eu sei hoje, mas naqueles dias sequer tinha o controle sobre meu corpo.

Em pouco tempo eu estava em uma casa de infectados onde muitos enfermeiros atendiam, o lugar era pura agitação. Longe de ser como no hospital, funcionava na informalidade, e lá, ganhar uma injeção era uma brincadeira. Vinham pessoas diferentes com remédios e pílulas, além de biscoitos que eram constantemente oferecidos. É claro que este é um sonho, o primeiro de uma sequência longa, pois eu já estava intubado. Fora levado para uma clínica pouco ortodoxa: em cada sala havia um grupo de pacientes em um estágio de contaminação. A equipe de enfermagem rodava o salão com bandejas coloridas que indicavam a evolução do paciente, de acordo com a cor. Com o passar dos dias ficou notável que alguns enfermeiros sumiram, mas o lugar não parou de funcionar por este motivo. Às vezes aparecia o entregador de lanches e como a casa de atendimento era ilegal, haviam sussurros de que faziam experimentos com os pacientes. Uma pessoa da clínica trabalhava na casa de lanches. Se houvesse um paciente tentando fugir, naquela que seria a única abertura para uma fuga, o entregador o impediria. Era o que percebia, calado e desconfiando de tudo. Eu permanecia mudo, consternado com cenas de natureza puramente intransigente. Esse é o primeiro sonho de uma jornada que fica mais intensa, onde o delírio é a força no comando, e logo entendi que ali só haviam loucos.

A casa de infectados era tomada de enfermeiros paranoicos e não demorei a perceber que sequer eram enfermeiros de verdade. Haviam se inscrito para participar da filmagem de uma série, mas o projeto era uma fachada para experimentos com pacientes reais de Covid-19. O diretor da série era um homem altamente perturbado, pois seu processo de cura envolvia um tratamento que deixava os pacientes moles; ao invés de melhorar, pioravam até ficarem sem poder se mexer. Conforme se tornavam praticamente vegetais, iam para um outro local da casa onde se transformavam. Eu me sentia agoniado o tempo todo e com a certeza de ter entrado em uma furada, até que em dado momento tentei escapar, mas, impiedosamente, me acharam em fuga e fui jogado com os pacientes mais debilitados, que continuavam a receber biscoitos. Alguns não tinham mais braços, outros não tinham pernas e suas aparências se tornavam artificiais, parecendo mais com bonecos do que com humanos. A vida se transformava em biscoitos! Quando descobri que os pacientes eram na realidade transformados em biscoitos para o consumo de todos, entrei em pânico. Entre os amputados haviam antigos enfermeiros que tentaram denunciar o lugar, e a cada dia mais enfermeiros se tornavam pacientes. Antes do fim, uma enfermeira que foi minha parceira na tentativa de fuga e que buscava me ajudar retardando a minha transformação, acabou como eu. Quando já não haviam muitos pacientes a serem salvos, uma operação da Secretaria da Saúde desbaratou o lugar. A debandada foi rápida e sobraram poucos pacientes e biscoitos. A própria diretora chefe de saúde liderara a operação e nós conversamos, ainda havia chances para mim. Ela filmou uma declaração que divulgaria para toda a sociedade contando sobre as atrocidades ocorridas, contudo, chegou o secretário de saúde e o homem disse à diretora que ela não poderia fazer a denúncia ou estraria em uma fria que nem imaginava. Logo chegou a polícia e a diretora já havia postado o vídeo. Em seguida todo o sistema de saúde pública passou por uma reforma centralizadora e muitos locais foram fechados. O mais bizarro é que a série gravada nas dependências do local fora ao ar, e as pessoas diziam que o mundo era este mesmo. Muitos absurdos e crueldades deveriam deixar de existir, mas enquanto o ser humano não aprendesse a se respeitar e a respeitar o próximo, nada iria mudar. Todos estávamos presos em uma espécie de casa de infectados, só para loucos.

No próximo capítulo a jornada onírica se aprofunda em sua maior parte em dependências de hospitais, e a psicodelia dá lugar ao terror. Em paralelo a narração dos sonhos os aspectos clínicos serão apresentados com os medicamentos utilizados e a evolução, para, em seguida, adentrarmos em um universo subjetivo de significados e interpretações sobre a mente. Essa sabedoria, que não é minha, é da vida e ocorre com algumas pessoas quando atingem estados sombrios, sendo capazes de transmutação, de acender refletores internos onde estão reservados calores e, com eles, advém compreensões guardadas como as que brilharam em antepassados longínquos.

A aceitação diante do inevitável foi algo que me custou todas as energias disponíveis durante o coma. Nesse sentido, apresentarei filosofias e religiões que tratam da mente a partir do momento em que ela deixa de estar presente e alerta, passando a criar realidades próprias que interagem com outras matrizes de informação além das delimitações do espaço.


...continua

 
 
 

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