Covid-19 — Uma história entre a vida e a morte (parte 4)
- Daniel Trouche
- 12 de dez. de 2020
- 40 min de leitura

CAPÍTULO 7 - NEGAÇÃO
26 de setembro. A realidade não pode mais ser negada — 2020 vem sendo conhecido como o pior ano de nossas vidas, especialmente para quem nasceu a partir da década de oitenta. Em meu caso, além da restrição social e de pouco ter trabalhado neste ano, foi o ano em que quase morri — e 2019 já vinha sendo ruim por causa da ascensão negacionista que tomou conta do Brasil. E com a chegada da Covid-19 assolando o mundo, a negação foi intensificada em nosso país, atacando justamente o que há de mais sagrado entre os seres humanos: a vida.
Para muita gente a epidemia parece já ter acabado. A primavera inundou as ruas de Curitiba com ipês amarelos. Minha rua e outras nas quais caminho ficam tomada pelas flores caídas nas calçadas e é bonito de ver a floração de diversas espécies. Apesar da seca, que vivenciamos há meses, e de estarmos com rodízio na distribuição de água, o florescimento veio abundante. Junto a primavera ondas copiosas de calor também chegaram, com isto, as pessoas querem sair de suas casas para ir aos parques, a praia, a sorveteria e aos barzinhos. É um tipo de pré-verão. Posteriormente, o calor tende a aumentar, mantendo ainda mais as pessoas nas ruas, e ocupando espaços públicos que se tornam aglomerados.
Há um justo interesse em recuperar o tempo perdido. Com muitas empresas fechando e trabalhadores ficando sem o sustento das famílias, o retorno das atividades se tornou cada vez mais impositivo. Mais de 63 milhões de brasileiros receberam auxílio emergencial devido ao isolamento social. Essas são verdades, mas na era da pós-verdade devemos tomar cuidado com o que a gente ouve. A pós-verdade é um neologismo que tem tudo a ver com o negacionismo e as fake news. O leitor pode se perguntar como eu posso afirmar que vivemos em tal era, irei explicar. As ideias a seguir sobre sociedade, negacionismo, pandemia e meio ambiente são baseadas em diversas pesquisas e na conclusão que tirei a respeito do país em que vivemos. A perspectiva atual, traduzida por meio do posicionamento brasileiro em relação ao meio ambiente e a forma como lidamos com a pandemia, não é boa. Mas por que o meio ambiente? Com efeito, porque epidemias e meio ambiente estão inter-relacionados.
Epidemia e meio ambiente
Ao longo da história vem sendo observado que as principais epidemias e problemas de saúde pública enfrentados ocorreram devido à característica gregária do ser humano. Contudo, doenças transmissíveis, contaminações por falta de saneamento e a falta de atendimento adequado, são problemas históricos que continuam a nos perseguir porque a estrutura em que sociedade se divide não é justa e muito menos igualitária. As preocupações com os problemas ambientais e sua vinculação com a saúde foram estabelecidas em padrões de qualidade do ar e das águas desde os anos 70, e na Constituição de 88 a preocupação foi descrita em artigos como o Art. 196, que define a saúde como um direito de todos e um dever do Estado.
Deve garantir “mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Em um artigo escrito para a revista Saúde e Sociedade, a professora Helena Ribeiro, do departamento de saúde ambiental da Universidade de São Paulo, USP, afirmou já em 2004 que o padrão de desenvolvimento econômico brasileiro tem gerado a exclusão de segmentos sociais de um nível de qualidade ambiental satisfatório. Em decorrência do desequilíbrio social transcorrem os problemas de saúde. A situação, dezesseis anos depois, vem com muito pesar porque não conseguimos superar estes problemas, ainda que tenham ocorrido avanços na expectativa de vida populacional. Contudo, o aumento não chegou de uma forma mais sustentável de organizar o meio ambiente; tão somente se deu pelo trabalho do SUS no controle e prevenção de doenças decorrentes do ambiente e das atividades produtivas.
O meio ambiente permeia todo o ambiente em que vivemos. Atende desde o espaço natural ao espaço urbano, abrange a sociedade e a economia — tudo faz parte do meio ambiente, e as dificuldades de saúde pública acompanham o problema ambiental desde sempre. A Organização Mundial da Saúde, OMS, utiliza o termo “saúde ambiental” para se referir a todos os aspectos da saúde humana, o que abarca a qualidade de vida e os fatores físicos, químicos, biológicos, sociais e psicológicos no meio ambiente. Além disso, o meio científico em sua expressão mais séria e mais respeitada defende a teoria que as pandemias estão associadas aos problemas de mudanças climáticas e a perda de biodiversidade provocada pela ação do homem, principalmente pela devastação das florestas nativas para o cultivo do gado e da monocultura — exatamente como vem ocorrendo na Floresta Amazônica. E no caso da China, com o novo coronavírus, por meio da ingestão de animais silvestres por humanos. A reconciliação com a natureza é um tema pertinente quando o assunto é a pandemia. A postura do Brasil em relação a Amazônia e a natureza foram evidenciadas desde as eleições de 2018. Para o governo atual a floresta é apenas um meio econômico para arrecadar dinheiro e promover negócios, com isso, acredita que é possível comprar dignidade para a população. Esse é o cenário otimista dentro daquilo que o governo propõe, mas a biodiversidade e a redução dos gases que provocam o efeito estufa não podem ser comprados com o lucro das exportações. Não adianta “passar a boiada”. Esse conceito é só mais um grande equívoco e um engodo negacionista. O único modo responsável com as próximas gerações é a preservação ambiental, com investimento em recursos destinados ao Ministério do Meio Ambiente e distribuídos corretamente para o Ibama e outros órgãos responsáveis pelo combate das queimadas, preservação, inspeção e responsabilização dos crimes ambientais — além da defesa dos povos nativos da terra, que são os principais preservadores que o país possui: os índios.
Os primeiros grupos étnicos do Brasil são os indígenas. Eles não puderam manter seu estilo de vida totalmente conectado com a natureza devido à invasão de suas terras, que foram divididas entre garimpeiros, madeireiros e fazendeiros, há séculos. A propaganda falsa sobre as queimadas não pode enganar pessoas esclarecidas, por exemplo, buscando culpar os indígenas pelos grandes incêndios na Amazônia; da mesma maneira, não pode afirmar que somos vítimas de países e ativistas internacionais porque eles queiram “se aproveitar” da nossa floresta. O interesse econômico em uma economia globalizada evidentemente existe, mas acreditar que o Brasil é “vítima” destes players internacionais no quesito meio ambiente é uma grande ingenuidade, e há diversas considerações a serem feitas. Como esquecer o “dia do fogo” ocorrido em 10 e 11 de agosto de 2019, no Pará. Produtores rurais foram mobilizados para atear fogo na Amazônia, o que foi noticiado dentro e fora do Brasil. Em 2020, de janeiro a setembro, a área devastada pelas queimadas equivale a cinco vezes o Estado do Rio de Janeiro, lembrou o jornalista André Trigueiro no início de outubro.
Sabemos que existe uma grande especulação na Amazônia para a negociação de terras destinadas à produção agrícola e pecuária, com previsão de rendimento por hectare comprado. As queimadas fazem parte deste empreendimento cujos financiadores, além dos fazendeiros locais, são empresários de todo o país, inclusive do Sul e do Sudeste. Investem em terras sem sequer conhecê-las com o único objetivo do lucro criminoso. Com esse embasamento inicial apresento prévia argumentação para apontar uma primeira forma de negacionismo, que é o ambiental. E há muitas outras formas, como a suposta inexistência da pandemia e a “ausência” do racismo no Brasil. A afirmação de que atualmente o país está cuidando melhor da Amazônia do que no passado é um embuste. Além de mentir, o governo se presta ao papel jocoso de afirmar que os institutos de pesquisas ambientais, como o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o Inpe, está equivocado. “A ciência está errada”. Logo o Inpe, cuja excelência internacional é reconhecida em pesquisas de ciências espaciais e atmosféricas, meteorologia, observação da Terra por imagens de satélites e estudos de mudanças climáticas, foi acusado pelo presidente de divulgar dados mentirosos sobre desmatamento, só para prejudicar seu governo. Uma parcela radical de apoiadores do presidente atesta tais declarações, mas sigamos com a explanação, pois existem outros fatos e conexões que ajudam a esclarecer o desenvolvimento pandêmico na saúde e sua letalidade.
Além de provocar alterações na direção pluviométrica, reduzindo a oferta de água e de atentando secas — como a que vivemos em 2020 —, ou de inundações, a devastação das matas libera os vírus existentes nas florestas, que por sua vez são transmitidos aos animais. Foi assim, e também por meio da ingestão de animais silvestres, que o coronavírus atingiu toda a humanidade, inicialmente na China. E será desta maneira, segundo os cientistas, com muitos outros vírus residentes nas florestas. Devido ao aumento da temperatura global o mesmo também ocorrerá nas geleiras que derretem no continente Antártico. Muitos vírus ainda chegarão até nós exatamente desta forma. Na Mata Atlântica o coronavírus foi descoberto em morcegos, por exemplo. Estudos globais apontam que doenças como a Covid-19, Sars, Mers e Aids chegam ao homem por meio de animais silvestres fugidos de áreas degradadas. Quando vemos nos noticiários as imagens de animais queimados no Pantanal ou daqueles que conseguem fugir do fogo, estamos sofrendo com este problema. Devemos tomar cuidado antes de compartilhar vídeos partidários a este ou aquele governante, que afirmam estar combatendo a pandemia ou as queimadas, pois em geral se tratam de fake news. A definição que me cabe a este respeito é que preservar a floresta é proteger a saúde. A luta da pandemia do novo coronavírus passa pela questão ambiental, gostando ou não de tocar nesta causa tão sensível ao Brasil, e que sempre foi negligenciada, especialmente nos últimos dois anos, com a desestruturação dos órgãos de preservação e de decretos que enfraqueceram a política ambiental.
Quando as pessoas passam a acreditar no político em detrimento da ciência, entendo que chegamos à calamidade pública. Pior do que o Estado agir clandestinamente, de forma criminosa com o meio ambiente e, portanto, com a saúde pública, é ter um eleitorado que defende seu líder se baseado unicamente na ideologia discriminadora que ele defende. O escritor francês Étienne de La Boétie cunhou este evento como servidão voluntária, lá no século XVI — se refere a triste característica da relação de subordinação entre o soberano e seus súditos. Na era da informação, esta sujeição dependente já deveria ter sido superada. O autor explicita que apesar do povo ter o poder para depor o tirano, à medida em que os servos sustentam a sua condição subserviente a figura do líder ascende como uma espécie de salvador. Esse é o momento simbólico em que as fake news e o negacionismo se encontram e denotam o que vem se chamado de pós-verdade. É sobre algo de aparente verdade, que com a devida influência ideológica, se torna mais importante do que a própria verdade. Também é o suficiente para afirmar que não vivemos mais em uma democracia liberal, pois a constituição é subvertida pelo governante com o apoio de uma parcela da população. Ao menos existe uma forte resistência política a este movimento.
Se antes de ser internado eu me questionava se o caos político e o alastramento da pandemia seriam mesmo fruto do negacionismo, hoje não tenho mais dúvidas, e o mais triste é a negação à própria vida e da ideia de beleza da grande comunidade humana. Um número crescente de pessoas — neste ponto afirmo independentemente de lado político — vêm sendo abatida para uma visão de negação humana, negação do humanismo e do bem querer ao próximo. Uma maldade insone foi o que despertou no país, e é notório que sempre existiu, mas atualmente está escalando; esta disfunção dificulta a compreensão da democracia no Brasil, e em aceitá-la como nosso sistema. Enquanto parte dos brasileiros continuarem a discutir se deve haver democracia ou se ela é boa para o país, sequer iniciaremos a debater as questões sérias. São elas, por exemplo, o caminho como iremos preservar o meio ambiente e investir em tecnologia de forma a utilizar da biodiversidade para a pesquisa e invenção de vacinas e remédios para toda a nação — o que por si só, já comporia uma forma mais inteligente de atuar na Amazônia, e com a devida reciprocidade com os povos nativos. E como iremos investir e melhorar nossa educação pública? Como iremos criar polos tecnológicos para não depender dos mercados externos e da flutuação do dólar para obter o que é necessário para a população? Esses são temas relevantes e atuais. Como iremos gerar empregos e uma melhor qualidade de vida à população, se estamos pondo fim a nossa indústria enquanto deveríamos transformá-la? Existem muitos caminhos inteligentes para o Brasil crescer, mas para chegarmos lá, a sociedade civil precisa estar unida, sobretudo, eliminando as fake news e o negacionismo na política. Esse é um longo caminho cheio de incertezas.
E a nova política?
Como cada nação e o setor privado serão capazes de imaginar soluções para superar a ressaca econômica, aumentada pela Covid-19, é uma grande interrogação global. Meios hábeis existem, mas com a ideologia ultrapassada o desafio se torna ainda maior. Investimentos para gerar empregos com responsabilidade econômica, social e ambiental são urgentes. Segundo o vazamento de um documento confidencial da OCDE, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, ocorrido em abril, o Brasil encontrou o esgotamento do atual modelo econômico, indo além de uma desaceleração cíclica. A documento aponta a necessidade de uma reforma estrutural ambiciosa com base em produtividade, e em “gastos mais efetivos em proteção social, educação e formação profissional”. A relação entre a lucratividade e os negócios necessita de uma remodelação e, em breve, sua urgência ficará mais evidente devido ao desastre socioeconômico que se aproxima de nações jovens demais para serem independentes e conservadoras demais para inovarem, como o Brasil.
Os problemas sociais e ambientais são dificuldades presentes nas agendas políticas mesmo em nosso país, cujo governo foi eleito com promessas de uma agenda ultraliberal. A controvérsia chegou ao Palácio do Planalto com a especulação de um novo imposto, e o assunto é o calcanhar de Aquiles do ministro da economia, Paulo Guedes. Com a pandemia, o governo foi obrigado a promover subsídios e pensar em programas contínuos neste sentido. Infelizmente, ainda não aprendemos a levar as questões sociais e ambientais a sério. O fato é que se faz necessário ir muito mais a fundo do que os reles programas sociais, que em cada governo são recriados afim de posarem como inclusão social — mas a finalidade verdadeira é ganhar votos. A única resolução realmente efetiva seria criar “políticas”, leis que efetivamente garantissem os investimentos de que o Brasil precisa em educação, saúde, cultura, ciência e tecnologia. Mas isso não pode ser construído apenas da boca para fora. A questão leva, inexoravelmente, a discussão entre o neoliberalismo e o nacional desenvolvimentismo.
Entendo que o lucro seja a principal fonte de interesse do investidor, mas se quisermos mudar, esta estrutura precisa estar ligada a um empreendedorismo social e ambiental, em que a cadeia de negócios esteja comprometida em preservar e gerar renda para as comunidades em que são realizados os empreendimentos. E as políticas devem conectar povo e governo. Isso é uma grande reforma e exige muito tempo, mas se continuarmos votando como sempre votamos, sequer começaremos a mudar. O leitor pode perguntar se isto não é utópico, e em certo sentido sim, porque é diferente da realidade prática. A própria formação da civilização atual poderia ser considerada utópica se pudéssemos regressar alguns séculos no tempo, e espiar por um olho mágico a vida atual. Ao mostrarmos para as pessoas deste passado os aviões, smartphones, computadores e arranha-céus, possivelmente seríamos rotulados como feiticeiros. E se este passado fosse no período da inquisição seríamos jogados em fogueiras. A utopia sempre se refere àquilo que é diferente da nossa realidade. Conviver com a diferença pode ser difícil algumas vezes, mas todo futuro emerge a partir de ideias projetadas no passado por um grupo de pessoas. Imaginar o futuro é o exercício de criar uma nova realidade.
Antes de voltar aos novos modelos de empreendedorismo, cabe a observação da política atual para analisarmos o banzé entre o neoliberalismo e o nacional desenvolvimentismo. A questão é fundamental, pois o objetivo é encontrar o caminho para obtermos transporte, educação, saúde, segurança e infraestrutura de qualidade. Para dar nome aos bois, Dilma Rousseff buscava o nacional desenvolvimentismo, apesar de não conseguir chegar lá de fato, embora quem mais aborde este caminho para o país seja PDT de Ciro Gomes. O nacional desenvolvimentismo esteve no Brasil com Getúlio Vargas, e com Juscelino Kubistschek a partir do Plano de Metas, por exemplo. Nessa visão o Estado define os rumos da economia no país, influenciando quais setores devem crescer, quais são os mais estratégicos para o país, e para isto enxergam no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES, como um acelerador de empresas. Contudo, ainda está para nascer um antidoto contra a corrupção, que sempre esteve ativa na política e na iniciativa privada. Conhecemos este filme.
Um pequeno grupo de empresários ligados aos governos acumulam muito dinheiro nas mãos, como foi com a Odebrecht, e os políticos recebem muito poder decidindo para quais empresas este dinheiro vai parar na iniciativa privada. O governo pode ter todo este poder para escolher quais empresas devem crescer? Não parece exatamente que seja uma boa ideia, portanto faltam dispositivos para que este desenvolvimento ocorra de maneira saudável. Parece que ficaríamos à mercê de políticos honestos. Será que dá? O próprio Estado pode perder o controle do jogo e o dinheiro acabar circulando em esquemas controlados por políticos e empresários escolhidos para este banquete do qual a população não participa. Com todo o desvio e concentração do dinheiro sendo drenado por estes grupos, os investimentos não chegam nos serviços que a população mais precisa, mas chegaria se não houvesse corrupção. Na prática, é formado um abismo perigoso entre a população e a tão sonhada qualidade de vida, cuja passagem só acessam os privilegiados que podem pagar caro, que podem se preparar para um mercado competitivo ou se colocar em posições no topo das empresas, indo de uma para outra conforme a onda de interesses de quem está por cima do grande esquema.
E a corrupção? No início a Lava Jato pareceu ser um agente de quebra no funcionamento deste esquema, mas o que aconteceu demonstrou que ela mesma fazia parte de um outro looping, este do Judiciário. Ela caracterizou um projeto de poder que sabemos como acabou, além disto o custo da operação veio caro e explodiu como uma bomba na economia e na política do país — e sobrou para a democracia, que acabou sendo demonizada. Nosso modelo enfrenta crises e demanda uma reestruturação complexa, pois envolve uma reforma política que não é do interesse dos chefes do Congresso. Chefes que sequer estão lá, são donos de grandes empresas, e os demais são eleitos pelo povo a cada quatro anos. Eles entram e saem, mas em geral são sempre os mesmos. A grande maioria está comprometida com uma mesma lógica de balcão de negócios entre as grandes empresas e o governo, até porque para ter uma campanha financiada para se eleger deputado é preciso estar comprometido com uma grande causa, e no Brasil, elas normalmente são as causas deste grande acordão entre mercado e governo, ou as causas sociais, que elegem uma menoria. Assim navegamos por este grande oceano chamado Brasil, com dificuldades em buscar um norte daquilo que pode ser chamado de sério e de interesse público.
Ora elegemos líderes populistas ora líderes que tocam este barquinho de acordo com o script embaraçoso e corrompido. Sem falar no populista que emprega meios degradantes para se manter impune. A laçada cheia de falhas e descontinuidade é um mal que precisa ser desfeito, mas como? Tem muita gente boa no campo da política pública, mas infelizmente elas não contam com patrocínio para ficar em evidência diante dos olhos da sociedade. A mídia apresenta cientistas sociais e certos políticos mais interessantes quase como animais exóticos ou sonhadores, e o conceito de utopia acaba aparecendo inevitavelmente, e muitas vezes este é o objetivo que deve ser percorrido, ainda que sob um olhar incrédulo. E deixar como está, apenas reclamando com certo histerismo irascível? Aí é ruim. Essa postura nos leva as ruas e aos protestos, o que é melhor do que a apatia, mas não se traduz em um projeto.
E o neoliberalismo do ministro da economia Paulo Guedes? Ele não salva? — alguns suplicam com fé, mesmo assistindo o barco Brasilis afundar. Até onde foi experimentado nas últimas décadas, especialmente fora do Brasil, esta vontade de liberdade da iniciativa privada em agir com a bússola apontando para o lucro, com incentivos fiscais e o caminho livre para a desoneração, consolidou o capitalismo das grandes corporações que virou o banquinho das pequenas e médias empresas. Com isso, a sonegação de impostos das grandes empresas explodiu e a arrecadação do governo caiu, enquanto os gastos públicos só aumentaram sem a eficiência tributária necessária para o ajuste das contas, o que levou a sociedade a pedir pela redução do Estado. Foi introduzido no imaginário social que um Estado nanico seria o caminho, mas sem observar que o neoliberalismo só aumentou a desigualdade social, já que não tem nenhum dispositivo para olhar para as pessoas. Sem o Estado e a política não é possível equilibrar o jogo para manter uma sociedade minimamente saudável. Somente com o mercado e um Estado saudáveis, talvez seja possível vislumbrar um país justo. A sociedade precisa amadurecer para criar as representações que irão conseguir chegar nas almejadas cadeiras do Congresso, atualmente ocupadas, em grande medida, por fantoches — ainda que muitos sejam pessoas de índole razoável, e outros sejam grandes homens que ficam com a imagem suja no meio de tanta sordidez. Assim, podemos sintetizar que o Estado não tem condições de determinar o mercado e nem o mercado deve deliberar sobre o Estado. É preciso equilíbrio.
Voltando a questão do empreendedorismo, basta ver que o tipo mais comum é projetado para atender aos mercados, aos investidores internacionais e aos bancos, e para a população fica muito pouco. São empregos que logo desaparecem, normalmente. A expectativa do empreendedorismo socioambiental, em contrapartida, tem foco na sociedade e, ao invés de gerar lucros bilionários para um pequeno grupo de investidores, ainda que o remunere bem e possa efetivamente gerar lucro aos investidores, tem seu foco na geração de benefícios em larga escala populacional, principalmente à população carente de infraestrutura básica, cujo acesso a produtos e serviços vem sendo progressivamente negligenciada. O fim desta linha já conhecemos. Sabemos que é a completa miséria na qual o Brasil já esteve, e que apenas de forma assistencialista com limitações em sua tendência, deslocou-se na primeira década do século 21. O alastramento das queimadas em 2019 e 2020 aliado à crise econômica, que aumentou parcialmente devido à pandemia, impõem um momento fundamental para rever os modelos de negócio. Com o destino das eleições norte-americanas que deram vitória a Joe Biden, um político que já anunciou como prioridade o combate vigoroso à pandemia e o investimento em políticas de preservação ambiental, a postura política do governo brasileiro fica ameaçada, indicando maior urgência na necessidade de mudança de rota.
Retomar um estilo de economia baseada em devastação e poluição não é uma maneira de assumir compromisso com o novo e superar os erros do passado — as nações devem levar a sério e como regra fundamental as resoluções dos órgãos internacionais de proteção ambiental. Enquanto o Brasil continuar arrumando inimizades internacionais na Convenção das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica e sobre Mudança do Clima, sequer abandonaremos o modelo linear de extração que gera consumo e descarte, e não entraremos em um caminho de economia circular que apresenta técnicas regenerativas ou modelos que restauram o meio ambiente. Se não quisermos enxergar o mundo como um lixão, não devemos tratá-lo como se fosse um. Uma visão cíclica dos produtos é necessária para a transformação de uma base de cultura extrativista para um modelo novo e sustentável. A experiência em ecossistemas naturais demonstra que é possível agregar recursos à longo prazo, em um processo contínuo de reaproveitamento. A tecnologia atual e o comércio global possuem as condições necessárias para entrarmos em uma nova era industrial, sendo responsáveis com o meio ambiente e gerando meios hábeis em que todas as classes sociais possam se beneficiar. Para chegarmos nesta meta os governos precisam realizar muitas mudanças, e, inevitavelmente, continuar a eleger o perfil de Câmara dos Deputados das negociatas, como fazemos, não irá contribuir com esta reforma. Quando a transformação não é implementada em escala, estas experiências existem apenas como protótipos vivenciados por comunidades pequenas que se espalham pelo globo, mas não geram impactos profundos na sociedade. Imagine, leitor, a indústria de transformação dando lugar a uma nova e remodelada indústria de remanufatura que desmonta peças, repara, substitui e leva para o teste de uma maneira totalmente reformulada. Ao invés do Brasil continuar a ser uma colônia extrativista para o mundo, poderia se tornar um modelo transformador e lucrativo para toda a sociedade. Faria de nós algo mais próximo daquele já anunciado, um dia, o “país do futuro”.
Um conjunto de meios que insere a coleta e a devolução dos resíduos sólidos ao setor empresarial, conhecido como logística reversa, complementa a economia circular, além da compensação ambiental a exemplo do crédito de carbono. A demanda por recursos financeiros torna a compensação ambiental um meio para adicionar os custos sociais e ambientais da degradação no valor final gerado pela cadeia de negócios que está em vigor. Os impactos ambientais continuariam a existir, neste modelo, mas em uma escala muito menor e com mecanismos de controle que estejam inseridos nas metas da Convenção das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. Essa nova economia precisa nascer, o novo coronavírus nos mostrou. A nova matriz possível se relaciona com a economia, a natureza e a saúde pública.
Modernidade vs. meio ambiente
28 de setembro. A razão está em baixa — O filósofo e diplomata brasileiro Sergio Paulo Rouanet defendeu a criação de uma nova razão, “consciente de sua vulnerabilidade ao irracional”, e atentou aos riscos da cooptação pelo poder, em As Razões do Iluminismo. Nessa fase da modernidade, de acordo com Rouanet, vivemos em um momento de ruptura com o mundo da razão e, ao mesmo tempo, ansiamos por verdades que atendam às crescentes demandas que o mundo hiperconectado inexoravelmente nos trouxe. O código proposto pelo neoliberalismo para girar a roda dos negócios e trazer sentido à vida humana, foi o consumo, estabeleceu o autor. Através dele sãos realizadas as mediações modernas entre o conhecimento e as práticas sociais. O consumo assume uma importância maior, pois aponta direto para as mercadorias; por meio delas, naturalmente são supridas as necessidades materiais, mas, muito além disto, o consumo se tornou elemento central na nutrição das emoções humanas, ressalta Rouanet. As mercadorias se tornaram mais admiráveis do que em qualquer outro tempo; por meio delas, a tecnologia evoluiu e a humanidade nutriu um modelo baseado na extração da natureza, manufatura e consumo de bens que servem como pilares simbólicos da nossa forma de viver. O efeito da posse de uma mercadoria pode servir como sinal de autoridade perante outras pessoas e, com este conceito, a noção de meio ambiente foi restringida à propriedade privada e ao que “eu posso pagar” e consumir.
A noção de que tudo se pode até onde vai o dinheiro se choca frontalmente com a noção de meio ambiente, pois todo ato de consumo gera seu impacto e, do lixo ao luxo, a natureza reclama que este estilo de vida tem os dias contados. E não basta ir empurrando a necessidade de transformação com a barriga, é necessário resistir as secas e as pandemias provocadas pelo devastatório estilo de vida atual.
Em Sobremodernidade: do mundo tecnológico de hoje ao desafio essencial do amanhã, Marc Augé aponta que as mudanças aceleradas do mundo constituem um desafio para o “enfoque etnológico”, ou seja, com a relação que permite passar de um ao outro. “As relações (de parentesco, econômicas, de poder) devem ser, em um dado conjunto cultural, concebíveis e gerenciáveis. Concebíveis, já que têm uma certa evidencia aos olhos dos que se reconhecem numa mesma coletividade; neste sentido, são simbólicas”. O pensador afere à esta mudança os movimentos complementares do passar da modernidade para a sobremodernidade, o passar dos lugares para os não-lugares, e o passar do real para o virtual. Assim, o que passamos de um para o outro é uma noção do que somos baseada no que consumimos, mas em um espaço onde não se podem ler as identidades, não há relação ou história — por isto são chamados não-lugares, que não são mais reais, mas virtuais. É lógico que a definição de um lugar para um não-lugar se estende para o uso que fazemos destes espaços: se o valorizamos, ou se excluímos e marginalizamos entes em detrimento de sua capacidade de consumo ou expressão humana, damos sua característica. Essa exclusão é o que vem ocorrendo em relação à saúde no Brasil, com o negacionismo na pandemia, que afeta principalmente os mais pobres, além do abandono completo das compreensões humanizadoras.
A relação que mantemos com o real depende do valor que atribuímos às imagens que acessamos por meio de uma vida virtual, e nos arriscamos quando nos deixamos quedar-se com as maravilhas tecnológicas como games e a super definição, o detalhismo gráfico oferecido pela realidade virtual, ou mesmo nas transmissões em HD, além das inúmeras redes sociais e aplicativos que nos rodeiam em casa, no trabalho e em nossos momentos de entretenimento. Os riscos de alienação progressiva ao submeter-nos completamente a sofisticação promovem de maneira ilustrada e contraditória, em muitos casos, o gosto pela exploração — qualidade natural do homem — mas também a ilusão diante de uma realidade criada. Nesse ponto nos aproximamos enquanto opinião pública da realidade em que vivemos, com sua sofisticação e conforto, mas também de seus perigos, suas epidemias, suas crises socioeconômicas, sua falta de humanização e indiferença em relação ao meio em que vivemos. Precisamos alterar, independentemente de nossas tendências políticas e ambições pessoais, para um sentido em que se abra caminho para o futuro sem fechar as portas do caráter coletivo do ser humano. Essas escolhas regem o nosso cotidiano e a maneira como nos portamos diante do outro, principalmente das pessoas que rodeiam nossas vidas. Isso é o que denota nossa qualidade como indivíduos e aponta de maneira inflexível para o futuro que criamos para nossas vidas.
Como declamou Fernando Pessoa acerca de nossas fórmulas: “O mito é o nada que é tudo. O mesmo sol que abre os céus. É um mito brilhante e mudo”. Se buscamos pela verdade não devemos atribuir tanta carga simbólica aos mitos, neste rumo, terminamos a jornada atolados em movediça pós-verdade, um tipo de limbo que experimentei de forma subjetiva durante minha jornada onírica enquanto estive intubado. A experiência de cada um é puramente ligada as emoções com que nos nutrimos.
O físico Fritjof Capra interpretou, recentemente, a pandemia do novo coronavírus como uma resposta biológica da Terra diante das emergências sociais e ambientais desprezadas pela maioria das nações. Sua linha de atuação guinou, nos anos 80, para as ciências da vida, e seu conceito sistêmico enquadrou a interconectividade e interdependência de todos os fenômenos naturais. O autor afirma que a mudança de paradigma depende de vontade política, pois conhecimento e desenvolvimento tecnológico já possuímos. Estaríamos prontos para romper com a cultura extrativista e a captura corporativa da política? Depende de vontade política, basicamente, que se estende não só aos políticos, mas à sociedade civil de maneira geral, pois ela realiza estas escolhas nas eleições. E a forma como as pessoas se comportam diante dos outros e como vivem suas vidas também apontam para esta revolução. Até aqui, nos rendemos a promessas e ameaças que seguem o protocolo político manipulado pelos mesmos interesses econômicos de sempre: grandes corporações e bancos. Ambos regem seus negócios em direção a uma sociedade que em parte tem medo de mudanças e é ameaçada diante de más exemplos e experiências que não deram certo; a outra, que almeja pertencimento a um tipo de elite do consumo, e é obstinada em passar a seus descendentes o mesmo sistema de pensamento e os dramas tão atuais para a espécie humana.
Há vontade para mudar, seguir adiante e encarar os desafios por parte da população? Sou otimista e acredito que sim, embora não seja otimista em relação as escolhas políticas que realizamos historicamente. Ou seja, não dá para mudar fazendo as mesmas escolhas, falando da boca para fora que defendemos o meio ambiente, a saúde e que temos bom coração. Essa é uma ilusão. Ainda assim existe uma aspiração e, enquanto for deste jeito, devemos mudar nossos posicionamentos políticos e ações humanas cotidianas. Precisamos trazer para nossa experiência uma postura de maior consciência sobre nós mesmos, e do mundo que construímos a cada dia — o que envolve largar a preguiça e a autoindulgência.
Em recente entrevista ao jornal Folha de São Paulo, Capra respondeu a uma questão com perguntas que resumem este quadro. “Vamos substituir combustíveis fósseis por formas renováveis de energia que deem conta de todas as nossas necessidades? Vamos substituir nosso sistema centralizado de agricultura industrial com o uso intensivo de energia por um sistema orgânico de agricultura regenerativa, familiar e comunitária? Vamos plantar bilhões de árvores capazes de retirar o CO2 da atmosfera e de restaurar diferentes ecossistemas do mundo?” — estas são perguntas que respondemos quando elegemos nossos líderes políticos, e quando atribuímos valor simbólico à personalidades como artistas e atletas que são influenciadores e invariavelmente se posicionam à este respeito. Devemos observar se eles disseminam meros discursos ou se são personalidades com algum histórico em prol destas mudanças. Certamente, os que foram indiferentes a estas questões durante a vida toda não são os líderes que devemos depositar o nosso voto.
Fakes de Covid-19
Um estudo da Fiocruz identificou algumas das principais fake news relacionadas a Covid-19 no Brasil. Entre as mentiras estavam métodos caseiros para prevenir o contágio e curar a doença, golpes bancários e notícias políticas, mas não fica por aí. As notificações faziam menção a Covid-19 ser uma estratégia política, indicavam o uso de cloroquina e da hidroxicloroquina sem comprovação de eficácia científica, e as pessoas a usaram por conta própria devido a notícias falsas — e outras eram contra o distanciamento social pela simples negação. Acha que está ruim? Espere! Entre as mentiras deslavadas estavam denúncias que a Covid-19 fora criada em laboratório, o uso da invernicida fora apontado como cura para a doença, e ainda ocorreu uma forte difamação contra profissionais da saúde. Tem uma, em particular, que não fez parte deste estudo, mas que não posso deixar de mencionar. A Covid-19 só é grave ou letal em idosos, ou ainda, pessoas fracas e doentes. Essa colocação foi feita pelo nosso presidente. No auge dos meus 39 anos não me considero idoso, tampouco eu era doente, muito pelo contrário, gozava de uma boa forma física e realizava corridas diariamente, mas estive intubado por 12 dias.
As fake news foram disseminadas em grupos de whatsapp e redes sociais como um rastro de pólvora, tornando as chances de contaminação ainda maiores, e transformaram pessoas inocentes em cúmplices de atos criminosos. Em agosto surgiu uma fake afirmando que a OMS passara a recomendar hidroxicloroquina para Covid-19, e que havia pedido desculpas por seu posicionamento contrário. Outra fake afirmava que vacinas para Covid-19 poderiam atrapalhar a imunização. E pasmem, algumas fakes são criativas e denotam teorias conspiratórias como puras verdades. Uma delas é que a vacina irá modificar o DNA dos seres humanos. E que tal a fake que diz que a vacina contém em sua composição células de fetos abortados; é triste e excêntrico — essas seriam teses de qual tipo de fanáticos, me pergunto. Gosto muito da que diz que as vacinas são parte de uma conspiração do Bill Gates para implantar microchips em seres humanos. Se os mentirosos de plantão fossem antenados com as notícias do mundo real, para dar mais aparência de verdade acusariam Elon Musk, que de fato pretende colocar chips dentro do cérebro humano, mas não através de uma vacina. O procedimento envolverá, se ele realmente conseguir ir adiante, uma pequena cirurgia em pessoas que queiram e paguem para obter o artefato.
Ainda há muitas fake news relacionadas à Covid-19 e eu poderia passar o restante deste relato falando sobre elas. “Isolamento social é ineficaz e 80% da população é imune, dióxido de cloro pode prevenir e curar, CRM vai cassar médico que não prescrever cloroquina, cloroquina cura 87% dos pacientes com Covid-19” são algumas, e o cardápio de mentiras é volumoso e diverso.
CAPÍTULO 8 - RENASCIMENTO
1º de outubro. Pesquisa sobre vacinas — Uma série de vacinas contra a Covid-19 vêm sendo testadas, e entre agosto e novembro houve uma queda no número de casos e mortes por contaminação da doença. Contudo, em dezembro algumas regiões do Brasil voltaram a ter um número de casos equivalente ao do auge da pandemia, em julho. A Fiocruz alertou que o sistema de saúde do Rio de Janeiro entrou em colapso no início de dezembro, com a falta de leitos, principalmente de UTI. Até que as vacinas cheguem e sejam distribuídas massivamente para a população, novas ondas de contaminação são previstas.
Especialistas da Fiocruz e da OMS, Organização Mundial da Saúde, afirmaram que a distribuição para a maioria das pessoas só virá a partir de abril de 2021 ou nos meses seguintes. Para o primeiro semestre, os lotes de vacinas serão destinados aos principais grupos de riscos e à profissionais da saúde. Ao olharmos para as cidades, não é o que aparenta. Muitas pessoas seguiram com suas vidas como se o vírus não estivesse mais ativo. De acordo com o Doutor Drauzio Varella, o Brasil vive um acúmulo de erros na pandemia desde a chegada do vírus no país. Não houve uma liderança nacional no processo de regulação nos procedimentos da saúde, embora tenham ocorrido diálogos entre os estados. Sucederam desajustes na reabertura econômica, resistência ao uso de máscaras, erros na volta às aulas em algumas regiões, como em Manaus, e a falsa divulgação de que haveria uma resposta imunológica duradoura aos já infectados. Pesquisa realizada na Inglaterra apontou a imunidade natural como não superior a três meses. Uma série de estudos vêm sendo realizados acerca da imunidade, inclusive com as vacinas, e também sobre as sequelas do novo coronavírus.
A chegada das vacinas
A vacina da Universidade de Oxford e a farmacêutica AstraZeneca anunciou em 8 de setembro uma interrupção em seu ensaio clínico durante a fase três. Um voluntário, de acordo com reportagem do New York Times, teria desenvolvido um quadro de mielite transversa, uma grave inflamação que ocorre na medula espinhal. A partir deste quadro, os especialistas costumam checar se o voluntário está no grupo que recebeu placebo ou vacina, analisam quanto tempo após a vacina ocorreu a doença, e descobrem se a pessoa desenvolveu a doença por causas naturais ou não, mas há um tempo de estudo até que se chegue a este tipo de resposta. Somente vinte dias depois a AstraZeneca anunciou a retomada dos ensaios clínicos no Reino Unido, após a Autoridade Sanitária do Reino Unido (MHRA) atestar a segurança da vacina. No Brasil, ela será produzida pela Fiocruz. A vacina não é feita com o vírus inativo ou enfraquecido, mas com um adenovírus, um vírus que causa um quadro inócuo ao ser humano e que contém um fragmento do SARVS-COV2. Dessa forma, se espera que o organismo humano provoque uma imunidade. Em novembro a Anvisa paralisou o estudo em fase três da CoronaVac devido à morte de um voluntário, contudo, foi provado que se tratava de um caso de suicídio e a vacina não tinha causa alguma em relação sua morte. O caso foi explorado politicamente, no intuito de excluir a vacina das aquisições brasileiras por ela ter origem chinesa, ou por ser comprada pelo Estado de São Paulo, cujo governador, Joao Dória, é o principal opositor político do presidente Jair Bolsonaro. Se o argumento de ser da China fosse válido, seria melhor desligar nossos eletrônicos todos porque quase tudo vem da China, inclusive as máscaras que usamos e alguns elementos para as vacinas de outros países, que também vêm do gigante asiático.
Ao longo das contaminações históricas, em todo o mundo, foram criadas centenas de vacinas, e seu tempo de desenvolvimento e distribuição costuma levar anos, de cinco para cima. O esforço internacional que vem ocorrendo para a criação das vacinas contra a Covid-19 é sem precedentes, em todos os tempos, e a velocidade da ciência também aumentou. O objetivo da fase dos testes das vacinas, fundamentalmente, é despertar no organismo a resposta imunológica contra o vírus e obter confirmação de não haver efeitos colaterais à saúde. Ao que tudo indica, as principais vacinas são seguras e até o dia 3 de dezembro já solicitaram a autorização da Anvisa para utilização em caráter emergencial. Quatro vacinas se qualificam, de acordo com os critérios da Anvisa, até o momento: a chinesa CoronaVac, da Sinvac, a vacina da AstraZeneca e Universidade de Oxford, a da Janssen, e a da Pzifer/BioNTech — esta última, entretanto, requer armazenamento a –70ºC, o que dificulta sua utilização no Brasil por falta de estrutura para o armazenamento.
Os testes pré-clínicos das vacinas são feitos em células nos laboratórios, depois são testadas em animais, com estudos sobre as respostas de seus organismos, e só depois inicia a fase 1, com testes em seres humanos voluntários, normalmente em um grupo pequeno. Depois vem a fase dois, onde se separam grupos por faixas etárias em centenas de pessoas. Nessa fase se atesta a indução da resposta imunológica e sua eficiência em diferentes grupos. A fase três é fundamental, pois além de ser realizada em milhares de pessoas, em diferentes localidades, essas pessoas circulam em localidades em que o vírus corre solto, como no Brasil, e por isto fomos escolhidos para testarmos a vacina inglesa e a chinesa. Os voluntários são separados em dois grupos, um recebe a vacina e o outro recebe placebo, uma substancia inócua. Nem os voluntários e nem os pesquisadores sabem quem pertence a cada grupo. Nessa etapa se verifica a resposta imune e se a vacina é segura; em meio a esses testes costumam ocorrer efeitos adversos devido à larga amostragem. Com a aprovação da vacina, os resultados são revistos e publicados em revistas científicas. Cada país e seus órgãos reguladores estudam os resultados e decidem se a vacina é segura ou não. No Brasil, a Anvisa é a agência responsável pela liberação da vacina, onde se espera que ela seja capaz de proteger a maioria dos voluntários antes de obter a licença. Pular a fase três, que é a fase mais longa, incorreria no risco de problemas clínicos. Por isto esta fase vem sendo tão esperada. Ainda existe a fase quatro, quando a vacina chega para toda a população e os laboratórios continuam acompanhando para estabelecer efeitos adversos em amostragem de milhões de pessoas. Para chegar neste momento, a vacina deve ter passado por todos os testes, com definição de doses, tipos de enfrascamento, compra pelos países e sua distribuição. Os maiores países do mundo já marcaram a data para começar a primeira etapa da vacinação, que varia entre final de dezembro e janeiro, mas o Brasil ainda não divulgou quais estratégias irá adotar, e a alta cúpula do governo não se esforçou em recomendar a vacinação, ao menos até o início de dezembro.
Aproximadamente quarenta vacinas em todo o mundo vêm sendo testadas em seres humanos, em dezembro de 2020. Os cientistas desenvolveram quatro técnicas consideradas como principais. A vacina genética, em que se injeta material para que a célula humana produza proteínas virais que geram resposta imunológica; a vacina com vetores virais, onde se usa um adenovírus geneticamente alterado e uma parte do código genético do novo coronavírus para que o vírus produza a proteína que deve ser bloqueada pelo sistema imunológico; a vacina com o vírus atenuado ou inativado, onde se lida com o vírus real, este tipo é bem conhecido e diversas vacinas como a varíola, catapora, sarampo e a febre amarela foram desenvolvidas com esta técnica; e a vacina baseada em proteínas, onde são usadas partículas que contêm fragmentos de proteínas virais para criar um envoltório com o exterior do novo coronavírus sem seu material genético, gerando uma imunidade.
As pessoas costumam ter receio de tomar uma vacina nova, por isto é importante destacar que foi preciso respeitar o tempo para que todas as fases fossem completadas, no caso da AstraZeneca, e, para as demais, que estão terminando a fase 3 no final de 2020. Ainda se soma outra dificuldade, que é a base científica acerca da eficácia de uma vacina. O alcance da imunização é proporcional à quantidade de pessoas vacinadas. De acordo com pesquisa publicada no American Journal of Preventive Medicine, se 75% da população for imunizada, o efeito preventivo da vacina deve ter 70% de eficácia na prevenção de uma contaminação para evitar futuras pandemias. Para colocar um fim ao surto precisaria ser 80% eficaz. Em meados de novembro, a Pfizer, a Moderna, a AstraZeneca e a CoronaVac anunciaram eficácia a partir de 90%, mas será preciso a maior quantidade da população recebendo a vacina para ter mais chances de tirar o novo coronavírus de circulação rapidamente, e nessa operação é importante que nossas lideranças e influenciadores trabalhem todos por uma mesma conscientização. É preciso vacinar! Até o início de dezembro de 2020, no Brasil, este trabalho vem encontrando problemas, tendo em vista que o Governo Federal minimiza a importância da vacinação, até desinformando a população, mas a tendência é que exista um movimento integrador grande entre os estados, a mídia e a sociedade civil em prol da vacinação. Além disso, em São Paulo, o governador João Dória anunciou o início da vacinação para o final de janeiro, data de aniversário da capital, desta maneira pressionando o Governo Federal a não ficar para trás nesta corrida. Contudo, o calendário depende da aprovação da CoronaVac pela Anvisa.
O mundo já se encontra em retomada econômica, as pessoas voltaram a se encontrar, a sair para os shoppings e os parques, a ir em bares e restaurantes, por isto é importante termos estes aconselhamentos como fiéis companheiros. Além disso, são fundamentais o uso do álcool em gel e da máscara, além de que se evitem as aglomerações. Drauzio Varella alertou publicamente para a possibilidade de haver uma nova onda de contaminação. “Vemos cenas que mostram a população se aglomerando, muita gente sem usar máscara. Nós não sabemos quais serão as consequências dessa quebra tão radical do isolamento”, disse em uma entrevista em uma rádio. Este é um momento de risco em que muitas pessoas serão infectadas, e muitas ainda perderão suas vidas. Cerca de 40% dos infetados ficam assintomáticos e outros 40% têm sintomas de gripes de leve a gripe forte, e 20% precisam de internação hospitalar. A fase de recuperação de um paciente pode durar de semanas a meses, com sintomas que variam muito de acordo com a gravidade do caso. Entre os casos graves, os sintomas podem ser: fôlego curto, dores no tórax, cefaleia, dificuldades neurocognitivas, tromboses, embolias pulmonares, fraqueza, alterações gastrointestinais, lesões dermatológicas, ansiedade, depressão, lentidão de raciocínio, convulsões e manifestações cardíacas.
Lucidez e mudança de paradigma
Lembro das dificuldades durante o período em que estive infectado, principalmente com a internação hospitalar e o período intubado, e o tema da morte foi constante. Ainda estamos diante desta realidade e uma massa de pessoas ainda será infectada, assim, considero importante que se reflita sobre o assunto — muitos de nós poderão se deparar com amigos ou parentes doentes. Ao longo do capítulo 4, durante o período em que estive intubado, apontei os conselhos do mestre Sogyal Rinpoche sobre a natureza da mente e para uma mudança de paradigma, neste sentido, aconselho sua instrução com a prática da meditação. Atualmente a meditação também é conhecida como mindfulness, este é um caminho para a compreensão e o estabelecer de um estado profundo de consciência. Não é preciso mudar de religião e nem entender os conceitos do budismo. Vida e morte estão sempre presentes e são manifestações da mente, do espírito, ou da cadeia biológica, de acordo com a perspectiva de cada um. A base de nossas experiências é a grande criadora da felicidade e do sofrimento; fazemos parte disto sempre que estamos em contato com as pessoas, e por este motivo o ato de sermos sinceros conosco e com os outros, e não sairmos repetindo reclamações sobre o mundo sem buscar a racionalidade, é de fundamental importância se tivemos a intenção de sermos felizes, e é preciso coragem para isto.
No ensinamento budista, o qual menciono pois possuo alguma conexão, vida e a morte fazem parte de um mesmo ciclo transitório e a mudança, ou a impermanência, permeia uma lei imutável no universo. As mudanças são realidades contínuas como mutações, e quando envolvem a vida ou a morte, especialmente, são conhecidas como bardos. Não precisamos acreditar ou não em vida após a morte, além disto, a morte também se refere aos fins de ciclo que ocorrem ao longo da nossa vida. Fim de namoro, de casamento, do trabalho e da cidade em que se vive, são ciclos que marcam alguns anos como decisivos, e também são bardos. Se enxergarmos estes momentos, e cito ainda quando nos acidentamos ou adoecemos, passamos por uma grande reestruturação e podemos encontrar uma janela de oportunidade para transformar nossa jornada em uma experiência mais lúcida e harmônica.
A história humana me faz imaginar um circo de instintos e de respostas automáticas — seja pela cobiça, a presunção ou a violência, como se tudo refletisse a imagem de pessoas no alto de um picadeiro bombardeando-se com o mal-uso de seu tempo. Quantas culturas maltratadas, esquecidas de si mesmas, da origem de seu povo, da multiculturalidade que abarca a todos os membros da sociedade, do mais rico ao mais pobre, e sua inventividade e capacidade de evoluir. Nós mesmos somos seres que fazem parte desta grande história que cria, que fere, que cuida e consola, mas que também mata. Ainda que todos estejam condenados a morrer um dia, até chegar lá andaremos a nos transformar como a lagarta que vira a bela borboleta, e nossas marcas geram as imagens que são a história universal; assim, tomar uma posição de consciência relacionada à coletividade está ao nosso alcance a cada dia. Muitas comunidades empreendem formas de vida saudáveis, dignas e honrosas, além de estarem escrevendo os capítulos que apontam para a liberdade e a autoconsciência, marcando a história como mestres dos predecessores que darão vida a seu legado. Assim nascem as tradições. Muitas vezes são ecovilas, comunidades sustentáveis, vilas e pessoas que buscam lançar por conta própria ideias engenhosas e empreendem em existências regenerativas. Em nível político e social, ao avesso desta ideia amargamos profundo descaso e apatia — tal como os castigos que decorrem da hybris na vida pessoal, o mesmo se dá em nível coletivo. Por toda parte se formaram frentes de batalha, por toda parte surgiram inimizades e a morte esteve ali, ocupando um espaço entre o novo e o velho, enquanto deveria ficar apenas entre o velho e o novo. Entre a pátria e a humanidade, entre a tradição e a multiplicidade, o descompasso afeta a todos.
Durante as grandes guerras do século passado até as últimas guerras norte-americanas, víamos inimigos entre nações, frentes de batalha e bombardeios aéreos nos mapas de países que dividiam povos. Atualmente, a batalha foi internalizada dentro da sociedade e das famílias, sendo motivadas por idealismo ou por egoísmo, ainda assim é um tanto incompreensível o passo atrás motivado por uma renovação política às cegas. Essa foi uma batalha sem mártires, apenas aflorou o martírio espiritual e o declínio cultural. Se nesse processo os meios hábeis para dar um basta em tal deformidade não encontrou a força necessária e nem o equilíbrio, o silêncio assistiu à manutenção da catástrofe de forma insegura. O problema coletivo existe, assim como existe o problema interno em casa um, com o excesso de si mesmo sem enxergar o outro. A auto importância está escancarada.
Tempos caóticos e babilônicos continuam sendo o tempo em que vivemos, ainda que tenhamos melhorado ao longo dos séculos. A permanência nesta linha de vida não emancipa e nem livra a mente ou o espírito de continuar a experimentar as mesma dores, medos e desgostos, vida após vida. Enfrentar os desafios e buscar a originalidade dentro de si pode não trazer conforto, não trazer segurança e nem uma vida fácil, mas emancipa o homem de seus dilemas interiores e tem o poder de lhe trazer a liberdade de espírito e a honradez para uma vida digna. Enquanto não empreendermos em uma linguagem digna dos interesses em favor da vida, de nosso bem-estar e do próximo, em uma geometria favorável ao coletivo e uma tabuada sensível a humanidade e ao nosso planeta, mas seguirmos em uma disciplina ditada por elites cuja única visão é o próprio umbigo, não daremos um passo adiante. A necessidade da verdade é a urgência do espírito, e ela permanece presente em todos os tempos. A superação do caos só vem através do sincero empreendimento do ser humano.
A pandemia foi e continua sendo terrível, mas serviu para que enxergássemos dentro do nosso ser as reais necessidades, as motivações mais elevadas e nossa carência infindável. E como ficamos isolados e sentimos falta do contato humano neste período. Se a única verdade fosse a material, os ricos não ficariam deprimidos, nenhum se tornaria miserável em espirito ou caráter, e nenhum padeceria diante da vida. Cada tempo e espaço necessita de uma evolução condigna com sua realidade, ainda assim, em cada tempo radicais influenciam multidões e as sociedades ficam perdidas, sem saber em que ideia acreditar ou qual ideologia seguir. A recomendação sempre foi única: conhece-te a ti mesmo e saberá como se portar. Mantém-se em equilíbrio. A busca leva à vida, e a ela nos entregamos de bom grado.
De que adianta polir as dolorosas experiências das quais nossos antepassados imortalizaram o sacrifício em estátuas de bronze, se não plantarmos condições mais auspiciosas para as gerações que virão? Bastará tolerar a própria misericórdia de nosso tempo sem pesar na balança da história universal as dores do passado com o que plantamos para o porvir? Nossos herdeiros virão com todos os registros prontos, gravados em vídeos e em simulações de realidade virtual, e saberão quem fomos — estudarão como lidamos com a pandemia da Covid-19, em 2020. Haverá um tempo novo, mas se não plantarmos formas limpas e munidas de compaixão, creio que a humanidade enfrentará uma crise maior do que esta de 2020. O homem que afirma ideias falsas, conscientemente, que sustenta mistificações e atua contra as leis orgânicas e fundamentais da vida, distancia-se de seus irmãos e causa prejuízo além de seu tempo. O ar poluído, o solo contaminado e o veneno verbalizado contêm a receita de tudo o que não devemos fazer.
O vendaval que antecede uma tempestade prestes a desabar pode induzir ao tencionamento dos ombros, e de pensamentos sobre as janelas que precisam ser fechadas. Particularmente, creio que seja um momento de expectativa de contato com as forças da natureza para sentir sua magnitude e nos impulsionar em sentido transformador. Da mesma forma, as tempestades que provamos nos desentendimentos das relações humanas pintam um cenário de sofrimento, como se todo o universo conspirasse contra, quando na realidade nossa mente é a lança de raios que aufere a amplitude dos obstáculos, que por si só, possuem natureza impermanente como tudo na vida. Devemos estar abertos se não quisermos ser arrebatados pelo clímax destes momentos. Durante meu longo sono, intubado, eu fui cooptado pelos meus medos e as ameaças eram reais, e aquela realidade se resumia em atos de insanidade. No entanto, quando acordei ainda entorpecido pelo pavor e pela sedação que me mantiveram dormindo, meu espírito, ainda cansado, logo se tornou receptivo, claro e aberto a abandonar a dor, desencadeando um sentimento de atualidade em relação à vida. Cedo ou tarde, necessitava despertar para isto, e o tempo não deveria ser desperdiçado.
Como tratar o estrago provocado pela Covid-19, para muitos contaminados, será uma tarefa que poderá levar bastante tempo, seja física ou mentalmente. Como um ex-paciente que ficou em estado grave, entendo a situação desesperadora que muitas pessoas se encontram por causa de seus familiares adoecidos, e outros tantos mortos. Se ao menos pudéssemos apelar para uma pretensa certeza médica de que estamos imunes, de que não teremos mais problemas decorrentes da contaminação, de que milhões de pessoas não passarão pelo que passamos, talvez fosse mais fácil esquecer de todo o ocorrido, mas não é assim que as coisas são. Se a Covid-19 fosse alguém, uma entidade a ser contatada, teria tantas coisas a lhe dizer que escrevi uma pequena carta a ela. A apresento antes de encerrar o relato.
Carta à Covid-19
Curitiba, 1º de outubro de 2020.
Para começar, sei que sua existência é natural. Você não é uma criação de laboratório como alguns temem, e gosta de se espalhar entre as pessoas. Você fez muito mal para milhões de seres humanos, machucando-nos, ceifando vidas e destruindo lares como uma punidora do destino. Mesmo que não tenha infectado a todos com a sua carga plena, a maioria dos homens foram atingidos porque em muitas ocasiões você fez o mundo parar. Quanto mais andava à solta e não sabíamos como te evitar de forma efetiva além de nos trancarmos em casa, mais você espalhava o caos em nossas vidas. Fechamos comércios, indústrias, universidades, escolas e todo o mundo em algum ponto teve que parar para que você nos esquecesse — e sei que nós também precisamos nos reconsiderar.
Seu apego pelas pessoas não tem sido bom para os homens e por mais que insista em estar entre nós, se realmente nos considera e tem esperanças de que possamos viver nossas vidas, por favor, siga o seu caminho. A nós cabe estarmos preparados se você resolver voltar no futuro. Rogo para que tome consciência e possa transcender suas angústias, seus medos, sua natural reação de se misturar entre as pessoas diante das oportunidades que surgem. Sabe, Covid, é preciso ter responsabilidade diante dos relacionamentos, do mundo e dos seres que vivem aqui. Na cadeia da vida há espaço para todos. Entendo que de alguma forma você também pode se adequar e por isto está aqui. Sei que você já dormiu por décadas, séculos e talvez milênios, e que sempre acorda. E quando acorda, mostra nossos piores defeitos.
Somos seres que vivem um kýlos, um “ciclo de vida” tão curto, e nossas transformações precisam ser tão rápidas para que nos seja assegurado o direito da continuidade, que encontramos dificuldades. Acredito que um dia chegaremos lá, espero! Damos muitos nomes para falar de nossas fases, e começa no que chamamos de primeira infância. Ela começa no dia em que nascemos — antes disto, ainda temos um nome para chamar o período em que o nosso corpo é formado no útero materno, o período pré-natal. Denominamos três períodos de infância e depois vem a vida adulta, mas criamos uma nova fase (adoramos criar nomes) e a chamamos de adolescência. É uma fase em que o corpo muda rapidamente e procuramos assumir uma identidade enquanto pessoa. É o maior barato porque passamos a vida olhando para esta escolha. Alguns mudam sua forma de ser depois da adolescência porque quando a criamos somos imaturos. Contudo, alguns de nós insistem e levá-la até o fim da vida. Penso que essa deve ser uma fase rápida, dentro do tempo necessário para cada indivíduo. Prolongá-la traz muitos problemas na vida do adulto. Tem ainda umas denominações sobre vida adulta, a intermediária e a tardia, mas prefiro apenas falar que após a fase adulta, ficamos idosos ou velhos. E ainda ficamos ativos, é bom que você saiba, embora haja um declínio das nossas capacidades físicas. Passamos a vida toda ralando para chegar na fase tardia e encontrar um significado para a nossa jornada. É muito importante para nós, por isto muitos se dedicam a isto desde o início da vida adulta.
Quando você chegou os idosos ficaram com receio que você se aproximasse deles, o que seria um grande perigo devido a seus corpos mais frágeis. Covid, muitos idosos não conseguiram te superar e acabaram morrendo. Mas não só os idosos, os adultos também não puderam resistir. A maioria dos falecidos por sua causa foram adultos que tiveram complicações. Infelizmente, foram embora de nosso mundo 1.5 milhões de pessoas até dezembro de 2020. Agora o estrago está feito, mas se você acordar talvez pare de continuar agindo desta forma, talvez você acorde para o significado que sair por aí agredindo as pessoas é muito ruim. Quem sabe até assuma uma nova natureza, talvez se transformando em um remédio. O sentimento que você carrega pode ser confuso, atribuindo momentos de contato com o mundo em que se sente parte ativa e importante, e você acaba encontrando significado nesta maneira de agir, mas se isto destrói vidas, deveria mudar. Imagine se nos deixar seguir e pudermos uns ajudar os outros, e isto deve acontecer dentro de cada casa, de cada local de trabalho, em pequenos núcleos de convívio social — se todos puderem ter contato sem tanta destruição, sem passar por cima dos sentimentos e das existências alheias, então você teria uma nova forma com certeza. Imagine se todos os seres puderem respirar e viver como uma parte coletiva da imensa biodiversidade que nos constitui como formas de vida, cada um em seu processo de maturação na imensa cadeia da vida.
Todos os seres vivos interagem entre si e transferem energia em sua nutrição. Essa rede alimentar entre os seres se inicia com produtores de energia, como as plantas, e segue até os que a consomem, os animais e os humanos. Quando olhamos para uma vasta extensão coberta por plantas e árvores, a chamamos de floresta. As florestas são um dos maiores berços da vida, junto a água e o ar, dos quais dependemos para viver. Sua função social e ambiental é central. Na floresta há uma variedade de seres como as plantas, os animais, fungos e micro-organismos, contudo, toda esta biodiversidade não é estática. Está sempre mudando e no último século a prejudicamos, exatamente como você tem feito conosco — por isto sabemos mais do que nunca que é preciso respeitar todas as formas de vida. Ecossistemas ricos nos fornecem solo fértil, agentes polinizadores purificam o ar que respiramos, moderam o nosso clima, e nos protegem contra inundações ou secas. Infelizmente, desmatamos as florestas e até a queimamos para que dessem lugar a campos de pasto, como na Floresta Amazônica. Nossas ações exploratórias e predatórias de recursos ameaçaram a perda de habitats de animais e trouxeram uma perigosa mudança climática. Eu sei que é daí que você veio, Covid, justamente das florestas em que nos metemos a extrair riquezas minerais, da fauna e da flora. Você veio do contato com estes animais e do contato deles conosco. Sua chegada tem muito a ver com a gente.
Não devemos te julgar, mas espero que você possa se integrar novamente a natureza como uma energia harmônica. Mude, Covid-19! Mude tudo o que te representa nesta terra. Mudem todos que te representam. Mudemos nós próprios, homens, pois nunca estamos sozinhos. Pulsamos juntos neste belo planeta e juntos viveremos por muitos milênios. Eu já fiz a minha escolha, agora resta você também fazer a tua.
Notas finais
Caro leitor, agradeço por ter chegado até aqui. Se pudermos desenvolver uma atitude de aceitação em relação ao que não compreendemos ou não gostamos, criaremos uma nova atitude em relação à vida. Alguns de nós poderão aprender com as experiências externas e outros com as internas, pois ambos recebemos, em determinada fase, um novo aprendizado oposto que brota em caminhos esquecidos de nossa personalidade. Observo este intento como benéfico, ainda que não seja uma tarefa fácil. E sei que por vezes desistimos, mas o desafio não cessa. Nossa consciência parece nos jogar à cara este tipo de demanda, implorando para que nos debrucemos sobre ela. E o quê de relevante na vida vem de forma fácil?
Se consideramos uma experiência como boa e justa, ainda que algumas ações sejam proteladas por nós, por medo ou preguiça, o agora é o momento de dizer sim. Não devemos nos acovardar e nem negar as pequenas soluções que surgem a cada dia. Precisamos nos tornar conscientes das tarefas que nos conduzem a um enorme sim diante de nós mesmos. A energia que possuímos deve ser aplicada conscientemente naquilo que em essência nos liberta e promove o bom movimento na vida. Fechar os olhos para a insegurança é a perda de tempo em forma de um monstruoso algoz dúbio e errante.
Minha recuperação diante da contaminação por Covid-19 me trouxe até aqui. Espero com sinceridade que todos os infectados pelo novo coronavírus possam transformar sua dor em superação, além de avaliar ideias como as que expus neste relato, pois as escolhas sempre aparecem em nossa frente. Deixar para depois? Acho que já sabemos o que acontece. Quando olhamos para um novo saber e nossas experiências demonstram seu valor, resta a nós empreendermos um caminho mais verdadeiro e digno de nossas vidas.
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