Covid-19 - Uma história entre a vida e a morte (parte 3)
- Daniel Trouche
- 5 de dez. de 2020
- 44 min de leitura
Atualizado: 11 de dez. de 2020

CAPÍTULO 5 — RETORNO
9 de julho. Acordo na UTI 1 de Covid-19 do HT — Voltei de um sono agitado sem saber onde estava e vi uma enfermeira ao meu lado. Ela falou comigo e notei sua expressão observadora, com olhos acesos que pareciam me indicar algo, mas eu mal sabia o que estava fazendo ali; descolado, percebi que pedia para respirar pelo nariz até que começou a retirar um tubo pela minha boca — assim, um tanto desconjuntado e sentindo a maior náusea de toda minha vida, fui extubado. O tubo pareceu infinito. Cuidadosamente, a enfermeira o puxou com as duas mãos para vencer devagar o atrito com a traqueia sem machucá-la muito e, deitado, assisti o material abissal sair de dentro de mim. O enjoo foi forte. Sem querer meu tronco reclinou à frente em um soco; ela parou com o susto e por um breve instante em que focou sua atenção em meus olhos, pediu para que respirasse com calma até que concluísse a extubação. Mal compreendi o que sucedeu, mas o desconforto acentuado me fez lembrar da sequência dos pesadelos e ataques médicos sofridos durante os “últimos tempos”.
Eu não acordei como alguém que se levanta no dia seguinte, lembrando perfeitamente da noite anterior; essa etapa é mais complexa para pacientes que passam doze dias dormindo com forte sedação. Além de estar confuso e sentindo alterações em meu corpo, a realidade não parecia diferente daquela dos sonhos. Foi o que acreditei ao acordar. Para conceber como me senti basta que o leitor lembre que em muitos sonhos eu tinha sido mutilado, drogado, torturado física e psicologicamente, ameaçado e morto. Ali, vindo de um sono conturbado e com um incomensurável desconforto físico, sem poder distinguir os sonhos da realidade, me percebi rodeado por enfermeiras e médicos e tive a impressão de estar internado há meses.
Não lembro bem deste dia, mas fui atendido pela doutora Fernanda. Era a médica que tentara me ajudar nos sonhos, por isto confiei nela apesar de vivenciar uma circunstância ambígua. Me explicou que estava na UTI e reforçou que ninguém me faria mal algum. Ante meu pavor ao olhar o ambiente — sem considerar o que já havia lhe dito e não me recordo — para ela deveria ser nítido que tinha acordado com algum transtorno psicológico. E segui duvidando de tudo, exceto dela, a quem implorei que não me deixasse ali. Havia um médico querendo me matar! Assim não restaram mais dúvidas, eu tinha acordado com sintomas psicóticos de delírios persecutórios, provavelmente secundário à sedação, de acordo com o prontuário médico. Evidentemente, o documento não poderia relacionar meu estado com os conteúdos mentais aflorados durante as experiências oníricas do período da intubação. Em seguida a doutora me colocou no telefone para falar com minha mãe em uma tentativa de me trazer à realidade. Quando eu disse a minha mãe que fora perseguido, e nem pretendi falar tudo, soube que não acreditaria. Pudera, uma parte minha também sentia que as histórias eram fantásticas demais para serem reais — a realidade e a fantasia dos sonhos se misturavam em uma forma impossível e excêntrica. Ela tentou comentar que eu estivera dormindo por dias e tudo se tratava de um sonho, mas respondi que o sequestro havia até saído na reportagem de um jornal, contudo, não havia jornal algum. O diagnóstico apontou ansiedade e mania de perseguição — e em seguida a psicóloga veio falar comigo. Não lembrava de seu rosto, mas confiei nela. Não que acreditasse totalmente nas duas, eram mais como “aliadas” que me protegeriam dos sequestradores, que eu não sabia se ainda estariam no hospital. Assim, todos na UTI souberam que somente as duas poderiam se aproximar.
O transe psicótico durou um dia inteiro e não lembro tudo o que disse, apesar de ter noção de determinadas passagens; por exemplo, acusei um enfermeiro de tentativa de homicídio, queria me matar com injeções. Pobre homem, para mim só poderia ser o doutor Mesignori dos pesadelos, o médico que não me deixava usar sua máquina. Pobre paciente. E na UTI tinham enfermeiros que portavam no avental o mesmo nome deste pretenso agressor, por isto seriam mancomunados e não poderiam se aproximar, e apontei todos eles à doutora Fernanda. Foi terrível passar pelo delírio, me sentia traumatizado como se fosse um soldado inimigo torturado em um tipo de guerra ancestral e demorada demais para simplesmente estar ali. Cheguei a falar para duas enfermeiras que eram “pessoas feias” por matar pacientes. Uma lástima! Entretanto, posteriormente soube que muitos pacientes da UTI acordavam inquietos ou perturbados. De acordo com o pneumologista e médico intensivista E. Wesley Ely, da Universidade de Vanderbilt, nos Estados Unidos, os sedativos utilizados durante a intubação podem tornar o delírio dos pacientes intenso. Em entrevista à revista Science, o médico afirmou que os pacientes podem lembrar de médicos e enfermeiras e pensar que estavam o machucando devido ao tratamento invasivo.
10 de julho. Acordo na UTI — Nessa manhã de inverno eu acordei sem receios de morrer ou ser perseguido e já tinha exata ciência que tudo fora um pesadelo horrível, mas que já havia passado. Com isso senti remorso. Quantas coisas não teria dito aos médicos no dia anterior, dia em que andara enlouquecido com tudo o que tinha acontecido até o momento, e recordei que estivera lutando contra os pesadelos. Me recompondo, fiz questão de cumprimentar cada enfermeira e médico que passava. O efeito encanecido da psicose ia na contramão do que eu mais buscava e mesmo que meu leito fosse apenas parte do seu trajeto, fiz questão de dar bom dia a todos, esperando demonstrar uma luz de sanidade. Acredito até que tenham avaliado meu ato como suspeito, e mergulhando na agudeza dos comportamentos da equipe notei que sua observação era íntima, ponderavam cada detalhe dos pacientes considerando o quadro de sua evolução. Em pouco tempo alguém conversou comigo informalmente e disse que meu progresso ia bem.
Mesmo que houvessem outros casos de horror semelhantes ao meu, creio que os tenha superado. A médica chegou a trocar um enfermeiro da UTI porque eu sequer podia vê-lo, acreditando ser Mesignori. Conforme me lembrava dos sonhos compreendia que no dia anterior vivera ainda o reflexo dos pesadelos; durante o transe disse à médica que não entendia como trabalhava ao lado de um carniceiro. Mesignori! O fato é que se eu tinha mudado da água para o vinho em um dia, o que não poderia atingir em mais um dia, pensei, e como todos já podiam falar comigo, com satisfação quis que viessem e me analisassem. Precisava ir para um quarto para me recuperar e se notassem que minha consciência estava restaurada, logo me dariam alta do tratamento intensivo. Além disso, deveriam ter outros pacientes em estado mais grave precisando daquele leito. Ao observar os demais pacientes intubados e ligado em seus medidores, em uma cena idêntica aos meus sonhos, exceto pela paz, rezei por eles.
Horas depois surgiu doutora Fernanda com toda a equipe da UTI. Passavam diariamente em cada paciente para a reunião de evolução, em que era discutida a agenda do dia. Eu já adentrara na restrita rotina do leito e falava normalmente respondendo suas perguntas ou expressando a necessidade ou não de qualquer tipo de auxílio relativo ao corpo, e logo duas enfermeiras vieram. Conversaram sobre o colégio dos filhos e assuntos de um mundo que comecei a pintar em pensamentos, e percebi que estava sem barba. Uma delas contou que havia a feito, e também depilara meu peito para evitar a irritação na pele com a colocação e retirada das fitas microporosas. A seguir doutora Fernanda me disse que poderia ficar em um quarto individual, mas em setor de UTI. Teria um espaço próprio com telefone, televisão e supervisão constante, e seria permitido o auxílio de algum acompanhante. Com receio de contaminar algum familiar pedi para ficar só; médica e psicóloga concordaram. Eu parecia bem e como seria em uma área de UTI sempre haveria alguém da equipe por perto.
Somente quando dois enfermeiros me transferiram para o quarto eu pude perceber que não tinha forças para ficar em pé. Meu corpo parecia pesar uma tonelada, e erguer cada perna era como dar passos de elefante. Ao chegar na acomodação senti frio, a camada orvalhada nas janelas pintava a cena de um inverno rigoroso; ao lado a enfermeira aguardou me transferirem da maca para a cama, antes de rasgar o plástico de onde tirou o lençol e um grosso cobertor xadrez para me cobrir. E ajeitou os cabos dos aparelhos, já que ainda recebia oxigênio pelo cateter e os batimentos cardíacos e a oxigenação eram intensivamente monitorados. A cada minuto um tipo de novidade se apresentava, e considerando os diferentes estados de consciência pelos quais havia passado, era meu primeiro dia ciente de tudo. Um enfermeiro ajustou a televisão, devolveu meu telefone, e em poucos minutos assistia ao telejornal do fim da tarde — as notícias eram sobre a Covid-19. Os casos haviam aumentado em Curitiba, que àquela altura estava em bandeira laranja; de acordo com os enfermeiros a coisa iria piorar, especialmente com a rigidez do inverno. Tive vontade de me distrair e pode parecer exagero, mas me mexer e realizar escolhas, por menores que fossem, deveria ser comemorado com grande interesse. Contudo, senti uma leve tontura ao assistir televisão e tive que deixá-la em um volume baixo. Busquei a prancheta com o lápis e papel que a psicóloga havia me entregado ao deixar a UTI1, e tentei usá-los, mas como não encontrei posição adequada e minhas mãos tremiam ao segurar o lápis, os larguei. Então decidi mexer no telefone, mas manipular o aparelho era difícil. Não havia obstrução mental de espécie alguma, na verdade eu tinha restrições motoras possivelmente causadas por atrofia muscular devido ao desuso, e ler me deixava tonto. A única coisa que lia com facilidade era uma folha na parede indicando meu nome, data de internação e os riscos associados do paciente: flebite, queda e LPP, além do diagnóstico IRpA, a dispneia. Assim que os enfermeiros me deixaram surgiu outra pessoa da equipe que faria o teste de gasometria com a retirada do sangue arterial. Meus antebraços pareciam pintados de amarelo, verde e azul, mas eram apenas marcas dos acessos utilizados nas últimas semanas. “Vai voltar ao normal” — a enfermeira disse em tom habitual.
Com toda minha fraqueza, a alimentação por sonda e a necessidade de duas pessoas para me levantarem quando tinha que ir ao banheiro — cada uma me erguendo em um ombro — a essa altura sentia essa jornada como algo demasiadamente admirável e tranquilo. Vivia o oposto dos pesadelos e ser bem cuidado era extraordinário. Por mais difícil que tivesse sido a experiência do adoecimento e o exorcismo onírico, senti também uma forma de beleza subjacente impregnada no quarto e no acolhimento recebido. Tudo o que me rodeava, ainda que fosse branco e sem cores, era cercado por uma alegria que crescia em meu interior; embora a proximidade dos horrores ainda fosse uma lembrança recente, não estar mais naquela situação me fazia sentir na melhor das fases. Os momentos em que fiquei só foram intensos e revelaram um olhar próprio, absorvente, como se uma parte minha estivesse vendo tudo e dissesse: agora entende o que é estar vivo. Me lembrei dos sonhos, de quando superei os medos e desapeguei do corpo físico, e como tinha sentido absoluta leveza como se pudesse escolher meu destino. Sem dúvidas tinha sido premiado com uma nova oportunidade. Antes de adoecer nunca tinha compreendido o quanto a vida é extraordinariamente fantástica, e mesmo quando não há forças para se manter de pé.
Boas emoções são como um amuleto da sorte para a vida. Quando figuram conservadas amorosamente e continuam sendo tratadas com o devido respeito, tendem a gerar boa fortuna; quando são esquecidas ou relegadas à infâmia e adulterações de sentido, podem ocasionar um grande infortúnio. Ao descobrirmos uma fração razoável deste bom sentido, em estado de ócio, potencialmente, o momento é tão positivo para a vida como se achar em frente ao espelho da consciência, reconhecendo que um caminho foi seguido até nos encontrarmos neste momento sublime. É como vivenciar um extraordinário tempo sozinho com o mundo todo dentro da nossa mente e, se pensarmos bem, nada mais poderia ser tão curativo como este tipo de oração sem palavras, despretensiosa… E por todos os monges e santos, isto é tão leve e distinto das relações e dos interesses, vazio de objetivos e puro como o limiar entre a liberdade e a loucura, que não pode ser medido em palavras. É esvaziar a mente da razão, da intenção e até da emoção, ao menos por um certo tempo. Nesse contexto me sentei encantado com a felicidade mais ingênua, imaculada de importâncias, e ainda assim disposta a tecer novos sonhos e caminhos diante das possibilidades a serem esculpidas sob o cuidado de um artífice ilustrado e invisível que dança uma música diversa e clara como um raro cristal que esteve sempre ao alcance sem que pudesse ser visto. A ideia me fez refletir sobre a perda de tempo provocada pelos estados de ansiedade, em situações que devemos colocar uma pedra por sobre — e sei que não é uma tarefa fácil. Me senti seguro e rodeado por um ânimo positivo e alegre, vivenciando a experiência por uma via íntima e calma. Além de estar presente e contente, podia arranjar pequenos cochilos sem medo de dormir, e ao acordar tudo estava em seu lugar.
Logo recebi visita da fisioterapeuta com o objetivo de iniciar alguns movimentos, e ela me pôs de pé para eu dar os primeiros passos dentro do quarto. E foram desafiadores. Depois veio a nutricionista, me ofereceu pudim. Naquela tarde ela retirou a sonda pela qual me nutria; a partir da alimentação pastosa que viria na janta recuperaria as forças. Tinha boa perfusão, ventilava confortavelmente com o cateter de O2 e não havia sinal de febre. É impressionante como as pequenas coisas possuem um valor que passa batido em nossas vidas, especialmente quando temos muitas atribuições e o tempo para cuidarmos de nós mesmos é relegado como menos importante. Devemos nos questionar acerca desta condição. Se não cuidarmos de nossa mente e do nosso corpo, quem fará isto por nós, e quando?
Ainda percorreria um longo caminho na fase de reabilitação, pois sempre há desafios a serem superados. Ao anoitecer um novo enfermeiro se apresentou, disse que ficaria responsável por meu atendimento durante todo o plantão e eu poderia chamá-lo a qualquer momento. Ficou na antessala do quarto, que era um pequeno espaço transformado em escritório com um computador, e me ofereceu uma consultoria completa sobre meios para não cair, respirar melhor e exercitar a cognição motora. Para a respiração ser realizada adequadamente, de modo a garantir minha independência do cateter, o método envolvia o ajuste da cama em uma inclinação de 30º para facilitar a oxigenação, e o esforço maior precisaria fazer na puxada do ar, até encher os pulmões, expirando lentamente pela boca. “Quero te ver sem este cateter na próxima vez que estiver aqui, mas acho que não vou te ver porque você vai se recuperar rápido e logo vai ter alta da UTI” — buscou me incentivar. Pude notar em algumas vezes o tom quase infantil no tratamento, e penso que esta seja uma tentativa empática de trazer alento aos pacientes que estiveram sujeitos a pesadas conjunturas de sofrimento.
Nessa noite tomei meu primeiro banho de chuveiro após duas semanas. Sentei em uma cadeira plástica segura e a ducha era uma das melhores que já havia experimentado. Podia me lavar sozinho, com lentidão e sem pressa. Vivemos tão atolados em tarefas e atividades ao longo dos dias, sob o argumento que este é o melhor modo de viver e provar a vida aproveitando o que ela tem a oferecer, que um simples chuveiro pode parecer trivial — após andar próximo da morte, para mim certos objetos de desejo ou planos de realização pessoal não são mais importantes do que os demais momentos. Sempre foi assim, isto apenas se tornou mais claro de enxergar. Todos os dias podem ser aproveitados quando os desejos se tornam menores do que a realidade. O enfermeiro permaneceu no banheiro apenas por segurança, falou de outros pacientes e da evolução de cada um, que poderia variar para cada pessoa. Fatores como idade e condições clínicas prévias podiam tornar este processo muito mais difícil do que foi para mim. Após vestir o avental recebi minha primeira prova de alimentação com um prato de arroz, frango cozido desfiado, caldo de feijão e legumes, além de suco natural de laranja e um caqui. Descobri que me alimentar não era mais trivial. Sentia o cheiro da comida, tinha vontade de devorar tudo, mas segurar os talheres, enchê-los de alimento e levá-los até a boca era complicado. Afundei a colher no arroz com as mãos trêmulas, e para não o derrubar me foi exigida concentração. Lá estava sem a sonda alimentar, com uma bandeja repleta de comida, mas para me alimentar sozinho levaria seguramente toda a madrugada. O enfermeiro teve que me ajudar a encher as colheres para que eu as levasse até a boca. Disse para tomar o caldo e comer o frango antes que me desse por satisfeito, privilegiando os alimentos mais substanciosos para ter maior rendimento nutritivo. Depois de comer quase tudo, finalmente me senti fortalecido. Em seguida, pratiquei a respiração indicada.
11 de julho. Sábado de televisão — Em um quarto de hospital sempre tem entra e sai, e o serviço da enfermaria é o primeiro, com as medicações. Nessa manhã fui repreendido por uma enfermeira por tentar sair da cama sozinho. “Imagine se você quebrar a perna, como é que fica? Vai querer ficar mais tempo no hospital? — sugeriu com o olhar. — Além disso, se acontece alguma coisa nós somos as responsáveis e podemos até perder a licença para trabalhar, sabia?”.
Disse a ela para não se preocupar, a chamaria nas próximas vezes.
Há anos eu não assistia outra coisa na televisão além de telejornais, filmes ou documentários, mas, nesse sábado, passei a tarde toda me distraindo com um programa sobre o interior do Paraná. Acompanhei as cachoeiras de Umuarama, os roteiros de turismo ecológico do interior, e teve uma reportagem sobre descida de rio por rafting, o que me deu mais vontade de me movimentar. Lembrei de uma descida que fiz com amigos no interior de Santa Catarina, anos antes. Foi um dia quente em que saímos de casa cedinho e fez um sol de rachar a cabeça durante o trajeto nas corredeiras, mas a água fresca era revitalizante. Um dos amigos fez questão de afundar o bote e no final apenas rimos. A reportagem passou para as delícias do interior do Paraná, e o programa foi dedicado a me fazer vontades, especialmente nas visitas pelas fazendas. De dentro da casa dos produtores a repórter experimentava comidas a base de mandioca; eram doces, tortas, mandioca frita, caldo, coxinha, biscoitos de polvilho, bolinho, pães, farofa, pudim, salada, sopa, purê e uma loucura de receitas que davam água na boca. Em compensação, tinha que me contentar com água de coco, frutas e o pão de leite meio seco. Nesse dia pensei muito nos sabores, nas cores e em tudo que me lembrava de algum gosto ou sensação. Pode não ser fácil de imaginar, mas o mundo parecia um lugar a ser explorado, como se eu fosse um estrangeiro conhecendo uma nova terra.
O tempo demorou a passar naquela tarde. Eu não tinha sono e estranhava o pouco movimento no quarto, que ao menos indicava que não precisava mais de tanta atenção. Meu único problema era a saída da cama, que era alta, e depois voltar da poltrona. Fiz isso três vezes, calculando cada passo com dificuldade. Às vezes aparecia alguma enfermeira me pegando em flagrante e dizia: “para subir e descer é melhor chamar”. Como não tinha sono, a noite assisti Tv Pirata, e eu parecia ter de volta meus dez, onze anos. As reprises foram transmitidas devido à interrupção das gravações durante a pandemia. E há quanto tempo não via a Zelda e os personagens da Armação Limitada, recheada com músicas dos Titãs. Eram os anos 90 na televisão, o mundo era mais ingênuo. De dentro do hospital provava o mundo e experimentava sensações que renovavam minhas esperanças. Mais tarde, Serginho Groisman entrevistou a Anita no Altas Horas. Soube que tinha sido convidada pela Madonna para gravar e entendi porque ela era mais do que uma ou duas músicas que conhecia. Artistas costumam ser associados à sua obra, apenas, mas existe uma vida além da fantasia e da fama. Não era o gênero de música que gostava, mas fiquei contente em conhecer a pessoa e alguns ritmos achei particularmente alegres e interessantes. Tudo me parecia um universo novo e mágico. Eu nunca assistira ao Altas Horas mais do que de relance, e lá estava absorvendo tudo, tendo um novo entendimento sem críticas, apenas observando. Também assisti uma entrevista com a Renata Vasconcelos do JN. Gostei de vê-la. Absorvi o que disse sobre as experiências no jornalismo diário e surgiram ainda outros personagens. Vieram lembranças do meu passado, de quando era repórter e entrevistava artistas todos os dias. Conhecera muita gente interessante, mas melhor do que isto é poder viver a vida conforme ela se apresenta.
Durante a madrugada fui atendido por uma estimada enfermeira. Lamentei por ter dito a ela, na UTI, que era uma pessoa feia por matar pacientes. Ali estava ela me atendendo com a maior boa vontade, cuidando do meu acesso, da medicação, e não resistiu em comentar como eu parecia melhor. Perguntou se me lembrava o que tinha lhe falado na UTI. “Mais ou menos”, disse, e sugeri que a achava bonita. Rimos. Nessa noite dormi depois do Corujão. As imagens reativavam minha memória e faziam eu pensar na vida e desejar por ela. Se todos os que se recuperam da doença puderem aceitar sua dor e acreditar que ainda existem esperanças, mesmo que estejam sentindo muitos incômodos, creio que muitos momentos poderão efetivamente surgir como uma fase de novas descobertas.
12 de julho. Um dia especial — Por volta das oito horas da manhã apareceu uma enfermeira e perguntou se queria tomar banho e ficar pronto. E me banhei sozinho, já tinha condições de me mexer bem. Ainda assim me ajudou a secar os pés e depois mediu minha oxidação, nessa manhã o cateter de oxigênio foi retirado. A enfermeira havia sido afastada do hospital por duas semanas devido a contaminação de Covid-19. Isolada em casa e sozinha, passou por febres altas, dores espantosas e teve muito medo. Narrou algumas passagens difíceis, mas se recuperou. Depois disse que a doutora Fernanda era a responsável por eu estar vivo. Sabia que era um trabalho em equipe na UTI, mas ela disse que a médica havia apostado precocemente na gravidade do meu caso e, pela maneira como a elogiou, percebi sua admiração franca. O mais incrível é que durante os sonhos também havia uma médica que apostara no agravamento do meu caso e sempre me ajudava.
Depois surgiu um fisioterapeuta com uma minibicicleta. Pediu que pedalasse deitado por dez minutos. “Agora chute minha mão. Mais forte, mais forte, mais forte” — mesmo com toda minha energia ele não sentia nada além de uns chutinhos molengas. Gostava de piadas sobre políticos, trazendo bom humor sem se posicionar, o que foi um grande alívio. Era a última coisa que queria ouvir. Só de acompanhar pela televisão a política já havia me exaurido e somente poderia a analisar no âmbito da saúde. Algumas pessoas reclamam do atendimento do SUS e falam loucuras, mas minha experiência me dizia o contrário. É claro que o SUS pode ser melhorado, em nível de administração e de investimento, mas com qual recurso isto pode ser feito é uma longa história. Logo o fisioterapeuta saiu do quarto e recebi a visita de um médico, sempre que vinha perguntava se eu sabia onde estava e que dia era. Eram perguntas básicas, mas suficientes para perceber o estado psicológico do paciente. Apesar de ter errado um dia ou outro, naquele dia acertei sem precisar pensar. Falou sobre a futura rotina de minha recuperação, e comentei com ele que eu vinha correndo diariamente em torno de 5 km mais ou menos, dependendo do treino. Respondeu que era ótimo, mas ainda teria um tempo antes de voltar a correr, e pensei que poderiam ser aproximadamente três meses.
— Primeiro você precisa recuperar os pulmões, mas no ano que vem você volta a correr — falou.
Engoli a resposta a seco. A notícia não chegou a ser uma decepção porque estar vivo já era uma grande coisa. Depois quem apareceu foi a doutora Fernanda, disse que faria um encontro com outros membros da equipe para me dar alta da UTI; eu não tinha mais riscos e minha evolução indicava seguimento em quarto de enfermaria para as últimas medicações e observação.
A enfermeira de cedo retornou para mais uma checagem, e juntos aguardamos a volta da doutora com minha transferência. Senti um misto de felicidade e despedida, pois depois que deixasse o quarto não teria mais volta, e eu não veria mais a equipe da UTI. Ao voltar a doutora me entregou duas folhas de papel, tinham desenhos coloridos que ela mesma havia pintado saudando minha vitória diante da Covid. Nessa oportunidade agradeci por ter salvo minha vida, ou ajudado muito, não me esqueceria — e em seguida fui levado pelo corredor na cadeira de rodas até um terraço. Chegando lá fui surpreendido. Tinham por volta de dez médicos e enfermeiras que estiveram comigo na UTI, traziam dúzias de balões de ar e com entusiasmo bateram palmas. A cena me deixou sem ação e foi comovente, todos ali tinham lutado. Os balões foram estourados e pareceu um pequeno foguetório diante de sorrisos e olhos marejados que já viram muitas mortes. Sempre que algum paciente grave conseguia reagir, eles faziam questão de celebrar. As palmas pertenciam a todos, então bati as minhas palmas à equipe. “Você recebeu uma nova vida, Daniel. A partir de agora eu quero que você cuide bem da sua saúde” — disse a doutora.
Creio que todos nós perdemos a noção de como é importante cuidar do nosso corpo, a nossa verdadeira casa. Nossa arrogância pode tripudiar em cima da dor e bater no peito julgando ser a força um alicerce inquebrável. Nesse ímpeto bagunçamos e até maltratamos a saúde por julgar que seja o “nosso corpo”, e por isto temos o direito de fazer o que bem entendemos. Realmente, ninguém pode nos impedir, mas a conscientização carece de divulgadores. Quem não quer ajuda realmente não pode ser ajudado, ainda assim fica o alerta, porque mesmo quando dizem saber e entender os riscos associados aos maus hábitos — o que parece uma resposta sem sentido — nós devemos empreender lucidez diante das pessoas. Assim como dissimulei a mim mesmo não precisar ir ao hospital, todos aparentam em algum sentido. Esse tipo de presunção involuntária é um comportamento padrão introduzido na lógica do nosso cotidiano, o que não nos desobriga de oferecer esclarecimento nas situações em que estamos conscientes. Digo isso porque acredito, e eu mesmo posso precisar deste tipo de ajuda mais adiante, e espero estar aberto sempre que alguém a ofereça. Invariavelmente, nos sujeitamos à excessos alimentares, além de exceder em bebidas alcoólicas, e fiz parte deste clube durante a juventude. Inúmeros males são procurados a fim do preenchimento de um espaço que só pode ser completo com atenção à mente e seus paradigmas.
Com a banalização da Covid em riste e hordas levando a cabo a lógica do “corpo é meu e faço o que quero”, a sociedade como um único corpo esqueceu que sua negação acabou machucando ou matando milhares de pessoas em todo o Brasil. Milhões até. Nesses dias em que estive no hospital a luta das equipes médicas aumentara bastante, e mais de uma enfermeira confidenciou que tinham medo de chegar ao ponto de ter que transferir um paciente para a UTI, como havia sido o meu caso, e não haver um leito disponível. A cada dia o número de internações era maior e, estatisticamente, não era difícil concluir que mais pessoas precisariam de UTI. Ter que escolher quem vive e quem morre seria como se estivessem matando uma pessoa, confidenciaram. Nesses momentos entendemos que por trás de todo médico ou enfermeira há um ser humano com fragilidades, com limites do que conseguem ou não fazer. A postura dos governos Municipal, Estadual e Federal vinha em sentido perigoso, e como um rolo compressor para cima dos profissionais da saúde. E ainda o são. Os governos trabalhavam com a ideia de controle rígido, com o isolamento social completo, somente a partir do momento em que os hospitais atingiam níveis próximos da lotação, com 90% das vagas ocupadas, ou mais do que isto. A escalada destes números para o 100%, conforme a evolução dos casos, poderia ocorrer em questão de horas. Dessa maneira os governos entendem que uma margem de pessoas pode morrer sem o atendimento de UTI. Essa é a civilidade atual. Desde que sejam recebidos em um hospital as estatísticas apontarão que os pacientes foram atendidos, mas muitos não resistirão. A lógica é estarrecedora, pois a morte que pode ser evitada é um dever do Estado, e quando ocorre em um hospital sempre respinga sobre os profissionais de saúde.
12 de julho. Um novo quarto, dois novos amigos — Logo que entrei vi três camas, e apenas uma estava ocupada. Era um homem de setenta e quatro anos chamado José, um sujeito admirável que foi uma companhia espirituosa durante os próximos dias. Foi internado uma semana depois de mim, mas não precisou ser intubado. Assistia televisão tranquilo e parecia bem, exceto por deitar em uma cama alta, com barras de proteção que impossibilitavam sair sem ajuda externa. Sabia bem o quanto isso era limitante, mas nessa ocasião fiquei em uma cama mais baixa que permitia me levantar e ir ao banheiro livremente. Ainda recebi carta branca para me movimentar como pudesse, o que incluía sentar na poltrona, ir até a porta ou ao banheiro e tomar banho pelo tempo que bem entendesse. Em seguida a terceira cama foi ocupada por João, outra pessoa fantástica, de bom coração e um lutador da vida diária.
José tinha vindo do interior para Curitiba na década de setenta, salvo engano. Trabalhou no campo e depois na cidade, como pedreiro, carregador e outras funções. Junto a companheira criou cinco filhos, todos trabalhavam e tinham as próprias famílias, vivendo sob o mesmo teto apenas ele e a esposa. José não falava com a esposa desde sua internação; sequer tinha telefone celular. Não gostava. Era um homem à moda antiga, mas com um senso de humor completamente atual, com sequências de piadas despojadas em sua simplicidade, o que tornava a amizade com ele automática. Sempre que podia, fazia graça com as enfermeiras metido em um ar de ingenuidade. Sua irreverência infame deixou saudades, e ele não se enquadrava em rótulos comuns.
O outro colega, João, tinha quarenta e quatro anos. Esteve na mesma UTI em que fui internado, mas por menos tempo. Apesar de mais velhos ambos eram casos mais leves, contudo, minha recuperação ia tão bem que era o único que não precisava de O2, e só eu saia da cama para sentar na poltrona. Visivelmente, seria o primeiro a ter alta. Para João a história da Covid tinha começado pelo estômago. Com sobrepeso, gostava de comer bem, mas certo dia ficou muito enjoado com o cheiro da comida que a esposa tinha preparado. A náusea foi tão forte que teve que sair de casa e, quando retornou, não conseguiu comer. A esposa até ficou irritada e desconfiou que algo andava acontecendo, mas alguns dias passaram e o homem só se alimentava de bolachas salgadas e água; com isso, ficou fraco, abatido e foi encaminhado ao posto de saúde. O único sintoma que ele sentiu durante a contaminação foi o mal odor, e o sentiu de forma intensa. Para ele todo alimento tinha cheiro de comida podre. Coincidentemente, falamos sobre comida a tarde toda. Viajamos por fazendas em que se preparavam frango caipira com polenta, pensamos no cheiro de costela no buraco, falamos de queijos, pepinos e pães, e depois de comentarmos sobre filhos, trabalho, política, a saúde e a educação no Brasil, concordamos sobre como o SUS realizava uma operação nacional no salvamento de milhões de pessoas em todo o país. Isso com todas as falhas inimagináveis geradas pela política.
No dia seguinte tomei um longo banho de porta fechada e sem nenhuma enfermeira para me observar. Depois, João e José acordaram. O mais velho foi levado para fazer exame de próstata. Aproveitava para fazer um check-up e voltou feliz da vida porque não haviam cortado nada, brincou. Uma enfermeira da UTI trocara de posto e agora nos atendia, e depois veio Luciana, que era coordenadora de enfermagem. Perguntou se me lembrava de alguma coisa dos dias de intubação. Como ela se referia a lembranças do nosso mundo, disse que não. “Apenas dos sonhos”, respondi. Contou que muitas vezes os pacientes em coma abriam os olhos, esboçavam reflexos e haviam respostas neurológicas para explicar estes sinais, ainda assim perguntavam se os pacientes lembravam de algo. Mesmo estando totalmente sedada, uma pessoa pode perceber a realidade ao redor, o que indica que nossa mente opera além do que normalmente acreditamos. Isso ocorreu comigo quando percebi a gravação de áudio de minha família apesar de estar totalmente sedado. Também há pacientes capazes de coisas espantosas e imprudentes, e soube de um homem que retirou sozinho o tubo da garganta, estando sedado.
Durante a noite senti expectativa em receber alta no dia seguinte. Já recebera a medicação da meia noite e ainda estava acordado, e na manhã seguinte fui o primeiro a levantar, por volta das sete horas. Seria meu dia de ir para casa? Tomei um longo banho sem utilizar a cadeira, e depois arrumei minhas roupas na mala como se estivesse pronto para ir embora. Os colegas acordaram e nossa rotina teve início, com a chegada das enfermeiras com o café da manhã e as medições de oxigênio. Vinham sempre em duas, e uma delas constatou que minha oxigenação havia caído. “Não estou gostando” — disse, indicando para que deitasse com a coluna elevada, respirasse pelo nariz e soltasse o ar pela boca. Ligado ao oxímetro digital, levou dez minutos para a manobra ter resultado e minha oxigenação voltar a medir 95%. Ainda assim não precisei receber oxigênio e a expectativa pela alta permaneceu.
O tempo passou e a doutora não veio nessa manhã. O hospital recebera muitos pacientes e Curitiba alcançava o auge da contaminação, até que às 16 horas doutora Karoline apareceu. Conversamos sobre minha recuperação, os sinais de alerta caso houvesse um problema, e ela estava disposta a me dar alta, mas no fim retornou falando que teria que esperar o dia seguinte. Durante a noite, que para mim foi de despedida, ouvi histórias sobre a vida dos colegas, ambos criados no campo, com passagens que me fizeram sentir saudades de um tempo que sequer tinha vivido. O passado era infinitamente mais livre, mas com outras restrições e faltas de acesso a todo tipo de coisa. Mais tarde uma enfermeira veio e perguntou o que estava acontecendo, eram onze da noite e a conversa não terminava, e depois ainda voltou com biscoitos.
14 de julho. Visita médica às 9 horas — Ligaram de casa perguntando se eu ganharia alta. Acreditava que sim, mas teria que aguardar. Os colegas ainda ficariam por mais um tempo, embora João estivesse largando o O2. Como prometido, doutora Karoline veio cedo e me deu a tão esperada alta. Conversamos novamente sobre a futura rotina que teria em casa, e não poderia mais ficar deitado o dia todo. No hospital somos medicados com anticoagulantes para prevenir trombose, mas em casa precisaria me mexer, fazer exercícios respiratórios e andar. Se fizesse muito pouco poderia ter necrose pulmonar, mas se fizesse demais ficaria sem ar. O segredo seria começar devagar e ir aumentando o esforço gradativamente. Em caso de emergência poderia retornar ao HT ou procurar outro atendimento. Havia ainda a suspeita de anemia levantada pela enfermagem, mas a doutora indicou que naquele dia os sinais já não existiam. Por segurança, orientou tomar potássio por três dias e fez uma carta dirigida à UBS indicando exames para confirmar que estava bem.
À Unidade Básica de Saúde
“Paciente internado neste hospital desde o dia 25/06/2020, com indicação de internamento em UTI com IOT e VM por período de 16 dias. Após extubação, paciente em curva de melhora clínica-laboratorial, sem intercorrências e com saturação de O2> 94% em oximetria de pulso e gasometria arterial, sem sinais de hipoxemia. Recebe alta com KCL VO por hipocalemia (quantidade baixa de potássio presente na corrente sanguínea) leve em paciente clinicamente estável (K 3,1). Na enfermaria, identificada anemia (hemograma em anexo), considero possibilidade de anemia relacionada ao período de internamento. Oriento a procurar Unidade Básica de Saúde para coleta de exames de controle e seguimento após longo período de internamento, sugiro exames (anexados). Orientado paciente quanto a sinais de alarme e neste caso, procurar pronto atendimento imediatamente”.
Minha irmã foi me buscar e nos abraçamos. Teve que entrar no hospital e me encontrar na porta de saída da área de Covid-19. Eu não tinha mais o novo coronavírus, mas por segurança foi indicado que continuasse a usar a máscara em casa por mais três dias quando estivesse perto de alguém. Minha irmã tinha deixado o carro na rua, e disse a ela que poderia caminhar. Ansiava por isto, e logo chegamos em casa. Finalmente pude dar um abraço em minha mãe e em meu irmão, que aguardavam com bexigas e uma faixa de boas-vindas.
CAPÍTULO 6— A NOVA VIDA
14 de julho. De volta em casa — Ao encontrar com minha família pude ouvir deles como o período em que estive internado tinha sido para todos, e fora um tempo tenso. Com a minha volta os ânimos foram apaziguados. Meus novos dias consistiam em “recuperação”, com boa receptividade e afetos imbuídos de dedicação; ao mesmo tempo que era ajudado, também tirava proveito das longas horas de descanso. Durante a tarde soube que recebiam notícias do hospital diariamente, com um atendimento humanizado e rico em informação. Essa prática se tornou comum em muitos hospitais, pois além do estresse já originado pela pandemia, as famílias que tiveram algum membro infectado vivenciaram um contato próximo com o novo coronavírus, desta maneira, compreendendo com mais seriedade a realidade da pandemia, enquanto outros núcleos familiares e instituições acreditavam que o isolamento social não era necessário.
Nos primeiros dias em casa segui a mesma rotina do hospital, acordando as sete horas, assistindo televisão, tomando o café da manhã e me exercitando antes de voltar ao descanso. É importante mencionar que os exercícios para a recuperação normalmente indicados são respiratórios, especialmente em casos de complicações pulmonares. Aprendi algumas técnicas no hospital, como as repetições em que abria bem os braços, devagar e em três tempos enquanto inspirava, para depois expirar lentamente pela boca. Outras técnicas eu já conhecia da ioga, e também busquei por vídeos de fisioterapeutas. Além da fisioterapia, caminhava todos os dias, e no começo aguentava apenas sete minutos, aumentando um minuto a cada dois dias. Em algumas ocasiões sentia tontura ou simplesmente fraqueza, mas só de poder andar o corpo já ativava melhor a circulação, liberando hormônios e ativando um novo ânimo, que também encontrei em pequenos banhos de sol. E outra força chegava com as ligações de amigos com quem não conversava há tempos, trocando mensagens e contando aos interessados um pouco mais sobre a minha história com a Covid. Para a maioria deles eu era o único conhecido a ter passado pelo estado grave. Entretanto, com o avanço da pandemia esta realidade mudaria gravemente nos próximos meses.
De tempo em tempo aparecia meu irmão ou minha mãe para conferir se estava mesmo ali, e se respirava. É engraçado, pois eu mesmo pensava sobre isto e não era de todo uma loucura, considerando que uma semana antes ainda necessitava do suplemento de oxigênio. A capacidade de recuperação do corpo e da mente são fenômenos poderosos que nunca devem nos escapar e, por este motivo, precisam ser postas em alta estima; mesmo quando existe dor — e ressalto esta afirmação pensando em todos os ex-paciente de Covid que ainda permanecem em casa com algum tipo de sofrimento. Era a segunda quinzena de julho e minha volta ao lar se dividia em pensamentos sobre a necessidade de repouso, e a vontade de regressar ao mundo assim que eu e ele retomássemos nossas forças. Lembrei dos médicos me indicando que a princípio estaria imune e não transmitiria mais o coronavírus; ainda assim, recomendaram o isolamento social pelo tempo que pudesse ficar em casa. Uma nova contaminação seria mais difícil de ser superada. A qualidade e o tempo da imunidade são relativos e existem pesquisas em andamento, mas sem dados conclusivos até meados de novembro.
Durante os próximos dias, deitado na cama e com tempo para o ócio, terminei uma temporada atrás da outra de diferentes séries. Focar demais a atenção como em um livro, por exemplo, era custoso; assim, me entreguei com prazer ao entretenimento rápido — nas passagens em que utilizava o computador tinha dificuldade no uso correto de senhas e, além disto, minhas mãos tremiam. Eu sempre derramava uma quantidade de café sobre a mesa, e para dormir tomava 25 mg de quetiapina, o remédio que fora inserido em minha medicação pós-extubação. Na primeira noite em casa, ao deitar, foi estranho não ser observado. O temor de não acordar vinha como uma lembrança do não saber e do não controle, e o melhor conselho seria vivenciar apenas o presente. O receio era comum em pacientes que desenvolveram ansiedade devido a intubação, e a inquietação ainda se revelaria durante à noite, ao acordar com a camiseta molhada por causa do suor noturno. O mesmo ocorreu por cinco noites seguidas. As sensações corporais, principalmente na região do tórax, eram de uma mudança tão densa que resistir à emoção do receio me levou a conviver com a incerteza, e aprender a não temer. A região que abrange o coração, pulmão e traqueia pareciam se misturar em um nó complicado demais de desatar, e encontrar uma posição adequada para dormir era complicado. Sem saber o que isto poderia significar organicamente, por vezes sentia um enorme desconforto e não sabia se haveria um próximo dia. E ninguém pode afirmar que sabe, mas refletindo sobre estas impressões físicas racionalmente, eu acreditava que havia o desnecessário ingrediente da ansiedade. Mesmo assim, quatro meses após a saída do hospital, ainda sentiria este desconforto corporal, principalmente no pulmão, onde as vezes sentia como se houvessem pequeninos cacos de vidro dentro — e viria a saber, por meio de tomografia, que se tratavam de “múltiplas áreas de tênue atenuação nos diversos lobos pulmonares, com distribuição periférica e peribroncovascular”. O laudo apontou compatibilidade com as alterações relacionadas à evolução de fases mais tardias da Covid-19.
Se estar em casa era uma ocasião para me recolher e perceber as emoções, pensamentos e aproveitar o tempo livre, a rotina principal foi voltada aos cuidados com a respiração. Como me alimentava bem, mais do que tudo entre as coisas ao meu alcance a geladeira foi um arrimo que me fez recuperar seis quilos em duas semanas. Em meu primeiro dia em casa liguei para minha filha e, embora ela não soubesse exatamente tudo o que havia passado, com oito anos de idade e minha ausência nas conversas por telefone e por vídeo ela entendeu que estivera doente. Não vivo na mesma cidade que ela, mas imagino que para uma criança que vive com pai e mãe e tem um deles afastado por causa de uma internação grave, o sofrimento seja terrível. Por isso evitar as aglomerações enquanto a pandemia não for controlada não é uma questão de medo, é simplesmente uma demanda inequívoca, basta um pouco de sensibilidade. Logo retomei a frequência de contatos com a Maria, o que me trouxe alegria e me fez aproximar do mundo.
Quando se volta para casa após uma internação longa, a rotina não volta ao normal imediatamente. É preciso ter paciência e repouso. Em algumas ocasiões eu supunha estar com algum problema cardíaco, em outras com danos neurológicos, sem contar o evidente problema pulmonar já conhecido. Manter a rotina de fisioterapia, mesmo em casa, assim como as pequenas caminhadas, ajudou no aumento da resistência física. Após dez dias eu chegava aos quinze minutos andando, o que mantive por uma semana e, a partir disto, logo caminhava por trinta minutos na rua, uma marca que busquei manter, pois acima dela sentia cansaço e aperto no peito. Mantive visitas médicas e realizei exames de radiografia, tomografia, e eletrocardiograma para descartar algumas sequelas. Mesmo que o sintoma mais comum para os pacientes em recuperação seja a ansiedade, cada vez mais são constatadas sequelas físicas pulmonares. Para esses casos os pacientes devem estar atentos aos sintomas e precisam, eventualmente, realizar o tratamento necessário à recuperação. Contudo, sabemos que no SUS é muito difícil conseguir consulta com um pneumologista. Eu estive bem durante minha recuperação, apesar de alguns sustos como na noite em que senti grande dificuldade para respirar. Não encontrava posição na cama, — e demoraram meses até que isto se resolvesse — mas nessa ocasião foi pior e fiquei preocupado. A medição no oxímetro digital batia os 97%, o que é uma boa oxigenação, ainda assim sentia aperto no peito e a puxada de ar não ia até o fim, e fiquei com o batimento cardíaco agitado. De acordo com o prontuário médico meu coração havia aumentado de tamanho durante o período da internação, e com várias informações desencontradas tudo passa a ser duvidoso quando nós não temos o conhecimento médico. Eu sabia que este efeito era natural devido à sobrecarga cardíaca antes da intubação, mas após este momento de temor em que estive prestes a ir até o hospital, o alívio veio quando descobri que a sensação vinha do excesso de gases. Sempre que surgia alguma sensação estranha buscava me lembrar de tudo o que tinha passado, pois esta atenção ajuda a perceber que só o tempo pode acomodar as coisas ou revelar novos problemas.
A melhor forma que encontrei para comparar as alterações provocadas pelo coronavírus foi falar com pessoas que também tinham passado pela infecção, e passei dias interagindo com um grande número delas nas redes sociais. Trocávamos experiências sobre o que ajudava, além de dividirmos nossas histórias. E esse é um ponto fundamental. A superação nunca ocorre com o esquecimento, mas com a aceitação e a transformação da dor em outro sentimento. Conheci muitos casos difíceis nos grupos, mas também haviam algumas pessoas perdidas. Por incrível que pareça, até em um grupo de contaminados surgiu um negacionista afirmando que bastava tomar vitaminas e cloroquina que tudo ficava bem. Ninguém com saúde precisaria se preocupar, dizia a pessoa; esse tipo de comentário é dispensável, sobretudo em um grupo de pessoas que conhecem bem a realidade, mas muitos dos infectados ficavam furiosos, e com razão. Também apareciam pessoas que sofriam com a perda de pais, mães, avós, tios ou amigos, buscando entre os infectados alguma resposta para entender o que é difícil de aceitar. Queriam saber por que tinham perdido alguma pessoa especial, um ente fundamental em suas vidas. E queriam saber o que tínhamos sentido durante a intubação, talvez para entender o sofrimento de seus entes queridos. Quando me perguntam, respondo que estes experimentos não podem ser comparados, pois cada um tem a sua experiência. Talvez o choro e a tristeza não sejam o bastante, pois a dor da perda só se supera com o tempo. O segredo da dor não é resolvido com palavras didáticas, um remédio melhor do que nossas considerações são o afago puro e simples. Cada infectado tem sua história e, mesmo entre os que não foram internados, muitos trazem consigo dificuldades para respirar, e meses após a contaminação. Em todo o mundo milhões de pessoas precisaram de internação, e uma parcela destas foram intubadas e continuarão a ser até que todos tomem as futuras vacinas.
Penso em como devemos nos relacionar de forma mais humanizada e ao olhar o mundo vejo expressões neste sentido, mas em nosso país — certamente — precisamos fazer mais. Eu obtive alta do hospital no dia da Queda da Bastilha — 14 de julho — e, em Paris, o desfile militar não ocorreu na avenida Champs Élysées. Apenas equipes médicas e familiares de profissionais de saúde que morreram por Covid-19 foram convidados a participar de um ato na Place de la Concorde, em uma bela homenagem aos que atuaram na linha de frente da luta contra o coronavírus. Nesse mesmo dia, no Brasil, a Agência Nacional de Saúde, sobre o argumento de não ser possível fazer o uso de testes, de forma paulatina e segura como auxílio no mapeamento de pessoas infectadas, derrubou na Justiça a liminar que obrigava convênios de saúde a cobrir o teste sorológico para o novo coronavírus. Ainda, o ministro Marcos Pontes, da Ciência e Tecnologia, negou que a exoneração da coordenadora do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais tivesse relação com os alertas do órgão sobre desmatamento na Amazônia e, por fim, nesse dia morreram 1.300 pessoas em nosso país, somando 74.133 óbitos registrados. A Confederação Nacional dos Municípios criticava a postura do Governo Federal no combate à pandemia. A imprensa, a OAB, entidades de classe e autoridades diversas criticavam a política do Governo Federal em relação a pandemia, mas grande parte da sociedade permanecia calada, negando a gravidade da situação.
22 de julho. Aumento de concentração — “Julho de 2020 foi o mês mais difícil de minha vida”, anotei em um documento que também traz um memorial dos sonhos que tive na UTI. Comecei a fazer pequenas anotações de tudo o que lembrava e do que me contaram no hospital e em casa. Quando estava internado na UTI, no início de julho, demorei a reagir ao tratamento, chegando em um estado que ou pioraria em uma incursão ainda mais delicada, ou melhoraria. No fim do mês estava em casa, mas seguia com alguns espasmos motores nas mãos e as vezes nas pernas. Também me incomodava o ar seco, pois afetava a puxada do oxigênio; contudo, receava mais os possíveis danos neurológicos, especialmente por ter lido sobre resultados de pesquisadores espanhóis acerca de alterações neurológicas em pacientes contaminados. Atualmente, penso que para o infectado, por questões psicológicas, seja melhor não ler todas as pesquisas publicadas, mas sem dúvidas, é necessário sempre o auxílio médico, mesmo que seja em nível informativo.
3 de agosto. Projetos e relatos sobre Covid — Ler os relatos de tanta gente nas redes sociais me fez pensar ainda mais em minha história. Essas vozes me tocaram e despertaram a ideia de descrever a minha experiência, para isto, deveria rememorar momentos delicados e, se fosse mesmo o fazer, teria que entendê-los — e deixei o tempo rolar. A cada dia surgiam insights e compreensões que apaziguavam os traumas e diziam que tudo bem, não haveriam mais pesadelos e sim a compreensão de suas causas. Essas reflexões talvez pudessem ajudar algumas pessoas, e pensei nos infectados por Covid-19 e de outras doenças; de alguma forma, toda esta gente acaba tendo um contato delicado que tange os momentos em que vida e morte estão próximas o suficiente para nos fazerem pensar em ambas. Com uma exposição sincera, talvez ex-infectados graves que tiveram a oportunidade de se recuperar poderiam reavaliar suas vidas. Se no mundo nós estamos sempre meio sem graça, melhor é dar risada das ninharias que caem como raios sobre o nosso querer, pois o tempo passa muito rápido. Dentro dessa expectativa pensei em abrir o baú de todo o ocorrido e me posicionar, ao modo como expressou Ferreira Gullar no poema Traduzir-se:
Uma parte de mim
pesa, pondera;
outra parte
delira.
Logos e demens, razão e método versus sensibilidade e subjetividade — por fim, a questão envolvia relacionar minha experiência com a compreensão que tinha do mundo. Enquanto lia a trajetória de Jose Servo no Jogo das Contas de Vidro, livro de Hermann Hesse, — e nosso futuro Magister Ludi se interessara pelo I Ching, sendo auxiliado pelos chineses e no final das contas indo aprender com um ex-castálico, o legendário eremita “Irmão Mais Velho”, em sua Moita de Bambu — a história me fez parar por um instante. Parei a leitura e nesse momento busquei por meu exemplar do Livro das Mutações, o I Ching. Questionei em pensamentos se o tempo de retomar a leitura do oráculo havia chegado, e me deixei levar pela intuição. Seu sistema de códigos, atribuídos aos principais sábios e filósofos chineses da antiguidade, apresentam estados naturais da vida que podem ser observados na natureza e nas relações humanas. Dentro do escopo teórico contemporâneo, — no qual a física quântica adentra com a compreensão da influência do observador na experiência prática — o oráculo pode ser visto como um guia de conselhos que entrelaça movimentos e ações não-locais com experiências distintas de mesmo valor simbólico, criando assim uma imagem aproximada entre os hexagramas e o momento do consulente. É importante mencionar que o I Ching não pretende mostrar estados de ser, ou as coisas em si mesmas, mas os estados de transição, que são os reais regentes ao longo de nossas vidas.
O livro surgiu no período anterior a dinastia Chou (1150–249 a. C.), com figuras lineares compostas por linhas inteiras e linhas interrompidas, superpostas por seis linhas. Lao Tsé e seus discípulos conheceram o I Ching, trabalharam nele e muitos dos aforismos do livro atual se inspiram em suas vidas. Confúcio fez longas reflexões acerca do texto e a versão que chega até nós, provavelmente, foi editada por ele, assim como os comentários interpretativos. “Talvez se tratasse de um sábio, de um mestre ou de um louco” — o eremita da Moita de Bambu —, mas eu conhecia o livro há mais de dez anos e sabia que voltaria a estudá-lo em um tempo que estivesse apto. Nos últimos meses já havia o separado, o livro estava em minha estante, bem próximo, mas somente nesse dia seu deu o retorno. A breve reflexão sobre os mortos, minha escuridão, minha casca e a necessidade de aconselhamento e de enxergar o mundo em seus detalhes sutis estavam à espera. Nem todos confiam em sua seriedade, por não admitir um certo paralelismo entre eventos distintos e a capacidade dos sábios em traduzir eventos naturais em forma de um oráculo, que aconselha acerca de qualquer questão. Esse não é um problema, pois acordei para o fato de que a mutação é a realidade de todos e, independentemente de suas crenças, o livro é uma sabedoria aberta que não distingue um consulente de outro.
Poucos dias depois eu lixava minhas novas varetas de bambu e as manipulava, finalmente, em signos yin e yang, até formar as seis linhas do hexagrama, amanhecendo para repetições que mostravam um novo amigo. A pergunta foi se deveria rememorar as lembranças e escrever o relato. Saiu Ta Yu, sem mutação nas linhas. O significado é de “grandes posses”, e se refere a clareza mental e a harmonia com o tao do céu. Tao, a totalidade, o caminho, acena ao caminho e ao caminhante, ao criador e a criação, sendo ele a forma e o vazio. Em Ta Yu, o homem superior reprime o mal e promove o bem em obediência à vontade do céu. A supressão do mal é indicada por Ch’ien, o céu, trigrama que pronuncia o julgamento sobre o combate ao mal nos seres. A promoção do bem foi indicada pelo trigrama Li, o fogo, que ilumina e ordena. Ambos possuem movimento ascendente, assim como os trigramas nucleares Chíen, céu, e Tui, lago. As circunstâncias eram favoráveis. A vontade residia, sem dúvidas, na subjetividade e na serenidade que traz o esclarecimento das situações, além deste ser um encontro com o criativo. Nesse caminho, a presunção das aparências, tão frequente em minha jornada, seria o oposto do que deveria ser realizado. E posso continuar a cometer erros de julgamento, mas ao menos serão erros sinceros, o importante é buscar clarificar as ideias — olhar com orgulho é como não enxergar, mantém-nos longe do que é franco, e por isto o nosso exercício deve ser distinto.
Algumas questões vêm sendo feitas ao oráculo por seguidores do I Ching, como a questão da saúde e o momento da pandemia no Brasil, que se encontra em plena abertura e as pessoas querem voltar a se relacionar. O momento é este, contudo, em nosso país reside uma política fragmentada, dividida e sem liderança. As informações são opostas, dependendo do lado que se olha, e a falta de cuidado em relação a pandemia se tornou ainda mais perigosa. Sempre que se vai de encontro a algo de maneira afoita e sem observar os perigos, o infortúnio permanece à espreita. Eu deveria tomar atenção quanto à minha saúde, atentei. E todos devem ser cautelosos. Questionei sobre minha saúde ao I Ching, que me respondeu com a imagem do “Poço” cujo cântaro fora quebrado, impedindo o homem de retirar a água, a fonte de vida. O poço mostra que a vida é inesgotável para todos, e nossa força vem de uma fonte que nunca acaba. O movimento das linhas demonstrou que o poço fora limpo e revestido, mas sua água fora desperdiçada; depois, o cântaro estava sendo concertado e voltaria a servir de fonte de vida, que consiste no alimento que o poço serve, a água. Também pode ser interpretado de outra maneira. Eu deixara de me nutrir da sabedoria contida no poço, assim a restauração foi necessária para que voltasse a buscar dentro dele o alimento da vida; em essência, uma razão para viver que só encontramos em nosso interior. O interior do poço. Existe uma indicação de restaurar a essência respeitando este tempo de reorganização. O movimento das linhas levou ao hexagrama Ts’ui, a “reunião”, quando a perseverança deve ser inabalável e o oferecimento do sacrifício, lido como a própria infecção, traz boa fortuna. A reunião também se consolida sobre uma boa base, uma comunidade, as pessoas e com as próprias forças psíquicas. O perigo que espreita a reunião é defendido com as armas da quietude e da renovação. Voltar-se para o interior em um momento de superação é a recomendação do livro a todos, especialmente quando nossa saúde é ameaçada.
Além desse projeto surgiu devagar o retorno aos primeiros trabalhos. A partir do trabalho o homem se reorganiza e volta a se relacionar, e por isto ele é sempre bem-vindo. Uma coisa leva a outra e no caminho da renovação as barreiras são rebaixadas, e o desenlace está intimamente ligado ao fim da pandemia e a reaproximação das pessoas. Em setembro eu me sentia melhor, até perceber a garganta inchar, o que atrapalhava a entrada do ar. Sempre havia alguma coisa diferente no corpo, e um detalhe a ser analisado durante o reaprendizado. Até o dedão do pé, com uma unha preta, poderia estar relacionada a um sintoma de fibrose pulmonar, mas havia sido apenas um ponto que ficara escuro por falta de circulação, e com o crescimento da unha começou a descer em direção a saída do dedo. O coração que batia forte e as vezes errático também chamou a atenção, assim os grandes esforços ou emoções tiveram que ser restritos.
A primeira coisa que assisti na televisão quando voltei para casa foi uma série sobre uma ordem secreta (fictícia) de freiras católicas guerreiras que lutavam contra demônios. Sem abordar as peripécias e o objetivo delas, me concentrei na protagonista Ava, uma tetraplégica que acordara em um necrotério sem saber o que havia acontecido. Me lembrei de algumas passagens dos meus sonhos, de quando vinha uma investida de algum antagonista e era como se eu fosse um paraplégico que não podia se defender. Ou quando achava que estava morto, para logo depois voltar à alguma ação e, no final das contas, sempre precisava aceitar a situação e aguardar as próximas cenas. Enquanto podemos tomar nossas ações não devemos reclamar de nada na vida, pois temos um campo de ação e a não ser que estejamos acorrentados, nós escolhemos. A maior dificuldade é que queremos tudo, e o que controlamos é nada. Nesses dias eu assistia muito a séries de subgêneros místico, e segui assim com A Ordem e Lua Negra. Entregar-se a fantasia é como voltar ao olhar de criança, onde os conteúdos não nos impedem de acreditar em ideias mágicas. Em vários momentos durante os episódios observei o desenvolvimento do arco da jornada do herói. Não que ache necessário classificar a vida dentro de uma fórmula pronta, devemos nos libertar de rótulos, mas quando estamos no puro entretenimento é interessante sim observar estas construções porque estamos vendo de fora, como expectadores, e podemos entrar e sair da história a hora que quisermos. Esse exercício ajuda a enxergar a nossa própria vida, e a bolha que criamos, o que é complicado porque não temos a cultura de olhar as dificuldades e os problemas como coisas naturais. É claro que problemas devem ser resolvidos, especialmente quando é possível resolvê-los, mas quando não há saída devemos aceitar sem padecimentos dispensáveis. Acredito que em situações amargas que estão próximas, acabamos nos preocupando para manter em mente uma ilusão, de maneira a acreditar que estamos fazendo algo para resolver o problema, enquanto o isto, o inevitável está para acontecer e a solução permanece além do nosso campo de ação individual. Esses pequenos e grandes dramas da vida, estruturados nos padrões que consideramos normais, possuem um tom novelístico e a pandemia trouxe muito disto na política e na mídia.
Se quisermos aprofundar na visão da relação da pandemia com a nosso horizonte cultural, faço ao leitor um convite para passearmos pelos jardins da história. As palavras cultura e culto derivam do verbo latino “colo”, que na Roma Antiga indicava o trabalho, o cultivo do campo, atribuindo o sentido de nutrição para uma condição de sobrevivência. A vida que levamos nas cidades e como a interpretamos está associada a esta mesma fórmula que reproduzimos cada vez mais para todos os campos da vida, como a família, a religião, o trabalho e o entretenimento. É uma boa coisa enquanto em equilíbrio com a vida e com a nossa eterna busca. Quando estamos debilitados, enxergamos a vida sem essa estrutura que projeta futuro, e o único drama é viver ou morrer. O resto são palavras jogadas ao vento. O colo, como o apresentamos, indica uma história a ser cumprida e a ser contada, portanto, precisa ser acumulada para gerar uma memória. O substantivo cultus indica o que foi cultivado e também o culto de enterro dos mortos, a lembrança dos antepassados. Lembrei dessas anotações que fiz durante uma especialização em jornalismo cultural, na Cásper Líbero, e trouxe para o relato porque este tipo de mediação simbólica é uma ferramenta para nos elevar além do dilema do apego. Em minha recuperação percebi de forma clara as referências culturais do nosso país sendo postas a cada dia, entretanto, com todo o respeito que devemos às nossas tradições, temos que honrar a possibilidade de mudança, especialmente quando já atingimos a estagnação e precisamos nos reinventar.
Durante esses dias que passei em casa e vivi a base de pesquisas, livros, filmes e telejornais, observei que a nossa cultura, os nossos valores como brasileiros, passam de jornadas tecnocráticas, racistas e desumanizadoras, — como nos casos da negação da pandemia e dos assassinatos de homens negros e dos feminicídios tão frequentes — e estão em plena batalha com o nosso aspecto humanístico, plural, diverso e multicultural. Essas observações ficam evidentes quando observamos a negação diante das possibilidades de contágio, por estarem alinhadas a esta forma de cultura em que este público deseja estar, e pelo que sua ideologia representa; nesse caso, é a conservação de um modo de cultura, especialmente associado a década de 70. Ainda que seja escapista, diante de todas as cores e todas as formas de ser do mundo atual, é muito difícil que esta onda se sustente, pois é como remar contra uma correnteza que ganha força e cresce amplamente na juventude.
A resistência diante do inevitável é uma forma de sofrimento que experimentei em meus sonhos delirantes, na luta contra a respiração artificial, contra o medo e a falta de controle. Em todas essas ocasiões, a redenção aparecia somente após a rendição completa diante do inevitável, que não era a morte física, mas a morte à ideia de controle. Convido a todos para atentarem acerca desta questão. O momento em que parte substancial da sociedade espera, e já vive em seus núcleos de vanguarda, é uma cultura viva que projeta futuro, é um salto além do que a cultura burguesa trouxe, principalmente nas formas cultas da música, da literatura e das expressões de etiquetas sociais. A cultura de massa, planificada em favor do consumismo, é verdade, já aprendeu a questionar este valor; por isto passou a buscar em sua juventude nascentes informais que utilizam a linguagem dos morros e das favelas, mais tangenciadas com a cultura popular do mundo de hoje, com seus dilemas e seus sonhos.
Anotemos que a cultura popular não é o mesmo que cultura de massa, elas apenas não praticam juízo de valor como a cultura burguesa. Nesse sentido, observo teóricos como Tzvetan Todorov defendendo o conceito de que o iluminismo está em baixa e essa chamada alta cultura tornou-se démodée. A razão deve evoluir ao invés de se render à barbárie. Um outro dilema é composto no campo das artes. Ela não é um produto e por isto não se presta a ser útil, a arte é desinteressada e amoral. Chegamos em um momento em que se clamam por valores de utilidade, hedonísticos, morais e religiosos, mas quando olhamos para as massas, eu pergunto: nós enxergamos essa unidade que a última onda política trouxe? A forma que se deseja inserir toda a sociedade não cabe nela, apenas a uma parte menor, e a mídia vem demonstrando este ponto nas últimas pesquisas eleitorais, tal como nos últimos resultados. Me refiro, desta maneira, a este mundo de valores e sua incompatibilidade pelo gosto da arte porque, simplesmente, não entende a liberdade e não deseja futuro. A arte não imita o passado, ela até simula o futuro por analogia e, como disse Umberto Ecco, a arte é uma obra aberta. Atualmente, a plateia se funde com o objeto exposto, e arte e vida estão intimamente ligadas. Elas não precisam ser intelectuais, estão mais para um exercício como a respiração, que de um lado colabora na ação e na produtividade humana, e por outro reside na quietude contemplativa. Como o artista é o meio da arte, hoje vemos muitos ataques aos artistas, pois uma parcela da população não aceita as expressões naturais, as consideram um tipo de ameaça a ideia de controle, de rigidez e solidificação, que como Z. Bauman apontou em seu legado, foi liquefeita nesta fase da modernidade.
Sob os escombros deste paroxismo pandêmico, ou convulsão social, nós caminhamos sabendo que não importa o que aconteça lá fora, como pacientes, como pessoas humanas e cidadãos, primeiro devemos nos encontrar e nos ajudar. Deveríamos utilizar os nossos desafios como a supressão da vida, a convalesça e a debilidade que sofremos como nação durante a pandemia, para dar origem à motivação necessária para a verdadeira recuperação, que além da saúde individual é uma recuperação social, cultural e humana. Quando estamos fechados em um invólucro de normas e etiquetas, não estamos vivos. A cura reside no aspecto enigmático da vida, e no valor de uma expressão autêntica.
Em meus dias de recuperação eu voltei a caminhar na rua Vicente Ciccarino, no parque Bacacheri e nas ruas do Boa Vista, em geral. Em algumas esquinas, observei os mais jovens em bares, despreocupadamente bebendo sem máscaras e curtindo a vida, mas cegamente. As pessoas estão cansadas das máscaras, mas não sabem que sem poder respirar ficarão esgotadas. O Brasil chegou a mais de 180 mil mortos por Covid-19 até 11 de dezembro, e alguns amigos infelizmente faleceram devido ao novo coronavírus. Outros conhecidos estão entrando em fase de contaminação, e o que podemos fazer por eles além de informar a população e mostrar o que aconteceu conosco? Além disso, é claro que também é importante canalizar bons sentimentos, bons pensamentos, orações e, cada um dentro de sua crença e de forma limitada, deve acreditar que a vida poderá triunfar. É muito triste enxergar a apreensão das famílias, o nítido encolhimento tomando conta das vidas, e ainda ver a falta de exemplo do restante da população que não teve um contato próximo com a doença seguir acreditando que não teme a contaminação ou a morte. Quantas ilusões…
Uma série de vacinas estão em fase de testes em todo o mundo, e no próximo capítulo o relato aborda esta questão. No Brasil, o Governo Federal apostou na vacina da AstraZeneca com a Universidade de Oxford, que deve chegar em janeiro de 2021 e será produzida localmente pela Fundação Oswaldo Cruz, e o Governo Estadual de São Paulo, na CoronaVac, desenvolvida na China pela Sinovac, que será produzida no Brasil pelo Instituto Butantan. Contudo, estas são apostas pequenas para um país de proporções continentais, como o Brasil. Isso significa que no primeiro semestre a vacinação será, ao que tudo indica, para a menor parte da população. Mas ainda é possível que o governo amplie o serviço. Algumas pessoas dizem que não irão tomar uma ou outra vacina por causa da ideologia política dominante neste ou naquele país, contudo, nenhuma vacina que não tenha sido atestada pela Anvisa terá permissão para ser distribuída em território nacional. A simplicidade é tão complicada assim? Parece que vem sendo difícil soltar as rédeas da consciência sem sermos estúpidos. Todos nós só temos a sofrer com estas bobagens ideológicas, na maioria das vezes são apenas reproduções automáticas que não se sabe nem o motivo de se defender. O exercício de liberar a consciência deve mesmo ser permanente, por isto Buda Shakyamuni assentou no caminho do meio ao invés de tomar extremos de austeridades ou indulgências e desperdiçar a outra parte que há em cada um de nós. Façamos o mesmo!
A narração da minha experiência como paciente de Covid-19 chegou em seu momento final, exceto por uma carta que ainda será apresentada nas últimas páginas deste relato, e que é destinada à Covid-19. Nos dois próximos capítulos que concluem esta narrativa, apresento algumas ideias originadas em pesquisas que venho realizando sobre negacionismo, estrutura política e social brasileira, e discorro sobre a chegada das vacinas e de que maneira poderemos aspirar por um país melhor, com pessoas mais humanizadas. Essas questões estão intimamente ligadas à pandemia, e ao que ela pôde revelar acerca das falhas estruturais nas engrenagens políticas e culturais que movem o Brasil.
…continua
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