top of page

Covid-19 — Uma história entre a vida e a morte (parte 2)

  • Foto do escritor: Daniel Trouche
    Daniel Trouche
  • 29 de nov. de 2020
  • 33 min de leitura

Atualizado: 12 de dez. de 2020


ree

CAPÍTULO 3 — SONHOS


28 de junho. Paciente alocado ao grupo de estudo cloroquina — O Hospital do Trabalhador conduzia um estudo comparativo em pacientes intubados com a adição da cloroquina ao tratamento. Alguns receberam a medicação, outros não, e assim entrei no grupo que recebeu. Eu apresentava roncos no tórax e permanecia acoplado à ventilação mecânica, sedado com propofol, fentanil e midazolam em bomba infusora; neste dia fui compensado hemodinamicamente com o uso de noradrenalina <0,1mcg/kg/min, TEC < 3seg.

Era um domingo de inverno em Curitiba e o mundo ultrapassava 500 mil mortes por Covid-19, segundo a Universidade Johns Hopkins. No Brasil haviam 57 mil mortos e aproximadamente 80 denúncias registradas contra médicos e enfermeiros por divulgação de fake news relacionadas a curas milagrosas. No mundo onírico, em data inexata, uma manifestação implacável de pavor surgiu em meu subconsciente — em ricos detalhes sonhei com um grupo de homens armados que tomaram o hospital de assalto. Antes de detalhar esta experiência, considero importante indicar ao leitor que a natureza dos pesadelos, ou mesmo de eventuais sonhos positivos, se dá única e exclusivamente em conformidade com a consciência de cada indivíduo. Todo ser humano vive a sua experiência no mundo, com suas lutas e vitórias, assim, cada um precisa enxergar suas próprias circunstâncias. O leitor que eventualmente conhecer alguma pessoa que esteja intubada, não deve comparar os meus sonhos com as experiências de outras pessoas. Esse não é um bom exercício, mas se estiver tranquilo talvez possa se auto examinar e olhar para sua vida imediata. Voltando ao sonho, eu estava inquieto e cada vez mais inseguro. Mesmo dormindo a nossa mente nunca para de produzir associações, normalmente reveladas em formas mentais e, diante da menor fagulha de emoção, imagens elaboradas podem emergir a partir de um processo sutil onde se concentra toda a nossa história. Grupos armados tomavam de assalto vários hospitais e eu sabia dessas ocorrências, simplesmente — era como se estivesse conectado a um tipo de noticiário onírico que tentarei decifrar mais adiante.

Durante a investida eu passava muito mal, outros pacientes morriam, e as condições para a manutenção de nossa sobrevivência permaneciam precárias. O medo de encarar a morte pairava no ar e um sinal invisível do destino apontava para o fim, e a morte estava presente, ela nos buscava e parecia penetrar em meus maiores medos corroendo tudo: emoções, expressões dignas ou não de menção, dogmas, crenças e o que quer que fosse. O prenúncio da morte me descortinava, ainda assim eu lutava contra ela e procurava resistir — é um tanto obscuro entrar nesta questão, mas entendo como verdadeira nas definições mais profundas. Em meu leito, neste sonho, eu fui sedado, envenenado e para piorar as máquinas hospitalares funcionavam com senhas que nenhum técnico conseguia acessar. Haviam sido hackeadas. Quando a polícia entrou no hospital os criminosos já tinham exigido dinheiro e tudo mais que as pessoas possuíam de valor. Eu e os demais pacientes éramos reféns ligados em equipamentos que controlavam nossas vidas, por este motivo a polícia tentou negociar e o imbróglio seguiu tenso. Durante os diálogos houveram desmaios e calafrios que atingiram algumas enfermeiras, e quando ficou notório que a polícia não deixaria o grupo assaltante sair livremente e três deles já haviam se rendido — estavam até algemados — uma enfermeira que pertencia à quadrilha e um outro membro se recusaram à rendição. Para o meu infortúnio somente esta enfermeira poderia salvar a minha vida; de posse da informação, a polícia garantiu a ela que caso se rendesse obteria um julgamento justo e teria a pena reduzida. Em resposta, ela disse que preferia me ver morto. Eu parecia estar diante de um julgamento. O tempo corria e mesmo quando seus próprios parceiros prisioneiros pediram a ela que se entregasse e salvasse os últimos pacientes, a mulher demonstrou total desprezo. O monitor do equipamento instalado sobre a mesa ao lado do leito registrava o enfraquecimento dos meus sinais vitais e, com a respiração mais curta e o aumento da falta de ar, fiz um apelo por minha vida: argumentei que não havia sentido morrer naquelas circunstâncias. A enfermeira me negou o apelo, e em seguida a máquina iniciou a contagem regressiva — eram meus últimos cinco minutos. Meu apelo fora ouvido atentamente pela mulher, que o avaliou e pensou em inserir a senha que possibilitaria os médicos controlarem o equipamento, a ação me salvaria, no entanto, disse que precisava de mais razões para o fazer. A enfermeira não estava convencida de que eu deveria viver. No instante em que a contagem entrou no último minuto e tudo parecia perdido, comecei a me despedir da vida. A percepção que eu tinha do tempo o fez congelar e, neste estado inerte, assisti a médica com o coração apertado, ela me olhava nos olhos como quem dissesse adeus, mas rompendo a barreira de um silêncio total o tempo acelerou quando uma jovem policial sacou a arma — brava e com incrível destreza, jurou que mataria a enfermeira com um único disparo caso eu morresse. Sua ameaça funcionou e com a máquina liberada os médicos puderam me ajudar.

O pesadelo não havia terminado, mas ao menos estava vivo e mantinha a esperança em achar uma saída. Eu sabia que estava preso dentro da minha própria mente junto a uma enxurrada de problemas a serem resolvidos. Com um pouco de paciência, leitor, poderemos entender em que medida estas alucinações são simbolicamente reais ou puramente ilusórias, até mesmo ultrapassando as definições para que sejam exploradas as motivações psicológicas onde surgem as experiências. O fato é que eu estava no começo de um longo caminho e sequer havia despertado para o que acontecia. Andava assombrado por deformações originadas nas emoções expostas sobre o mundo e a minha vida; desta maneira, o mundo coletivo e o individual se misturavam como se o destino de um fosse automaticamente disposto ao outro, e juntos caminhassem entrelaçados em uma única jornada.

Se eu estava em uma guerra interna com o vírus e com a minha própria mente, vencer a batalha seria como encontrar um lugar que não enxergava, e que sequer sabia da existência. Eu estava preso em um pequeno setor dentro da minha própria mente, justa ou injustamente, e lá habitava constituições gélidas e imensas que a cegueira acalentava. Andava como Alice encolhendo no buraco do coelho e meu tamanho, ou melhor, meu caminho, seria construir uma passagem nova. Antes haveria de enfrentar todos os meus demônios, mas a realização deste empreendimento incluía a ideia da morte. Ela sempre estava à espreita, mas para avançarmos em um sentido didático, a morte pode ser considerada em um sentido figurado; era a morte da compreensão de vida cheia de artimanhas e da opressão reificada de alegorias violentas, de vicissitudes que exigiam ações improváveis e até mesmo impossíveis. Eu desconhecia como me libertar desta mente impiedosa sem escapar da morte, mas não me sentia preparado a encarar seu estratagema ameaçador.


Enfrentando meus demônios

Dia 1º de julho. Notícia triste “Pessoal, não sei se vocês já sabem, mas o Daniel está com Covid e foi internado, está intubado e sedado. Vamos fazer uma oração para ele”, anunciou um amigo em grupo de WhatsApp. Minha família recebia notícias do hospital e encaminhava para alguns amigos, que por sua vez conheciam funcionários do setor de Covid-19, e com este apoio, também encaminhavam notícias para a minha família estabelecendo um intercâmbio informativo sobre o meu estado. No dia anterior minha oxigenação havia piorado e a função renal estava em curva de agravamento. A sedação por propofol, fentanil e midazolam me mantinha dormindo e sonhando alucinadamente, e houve um dia em que uma médica retransmitiu com um telefone próximo aos meus ouvidos a mensagem de áudio de meus familiares. Estava intubado em condição estável, mas perigosa, e os médicos tomaram a ação como benéfica. Apontaram que esbocei emoção de reconhecimento da mensagem; neste ponto cabe o registro de que mesmo com o corpo totalmente sedado, a consciência é capaz de estabelecer uma ligação com o mundo à sua volta.

Nos sonhos o tempo era sempre anômalo e havia uma corrida pela vida, no entanto, eu residia em local além do tempo e odiava estar lá. Era aterrorizado a cada instante, sempre esperando pelo próximo pesadelo, até que uma parte minha passou a indagar acerca do final da jornada. Haveria mesmo um fim para tormentas como a que eu atravessava? Eu não sabia se seria pela morte ou por um milagre, mas naquela circunstância a possibilidade de um fim era uma saída possível do sufoco. Como estar dentro da dor e repetir que não a quer é um tipo de autopiedade, agir desta forma apenas fortaleceu o medo. Com os obstáculos da vida comum acontecem situações semelhantes; podem ser menos aterrorizantes, é claro, mas a questão é a mesma, pois tem a ver, verdadeiramente, com a maneira como olhamos para a dificuldade seja ela grande ou pequena.

Em um outro episódio eu sonhei com um médico cuja autoridade internacional no tratamento de enfermidades graves era medida através de sua presença digital. O doutor era um homem um tanto excêntrico. Gozava de extraordinária aprovação no salvamento de seus pacientes, por isto, era como se diz no popular, “o cara”. Aquém desse cardeal da medicina, imagine um paciente em seu estado mais vulnerável, passando por um processo de limpeza colossal de modo que seus sonhos se repetem a projetar medos e ignorâncias. Você acha que tornar o médico um vilão poderia deixar os sonhos mais assombrosos? Com certeza, eu posso afirmar. Essa fantasmagoria dos meus pesadelos pareceu basear-se em um tipo onírico de contação de histórias, com uma jornada labiríntica e fragmentada cujo gênero narrativo conduz dramaticamente à tragédia. Se ao menos eu soubesse que tudo ocorria por meandros semânticos da mesma forma como a infecção agia por estratagemas bioquímicos, teria ficado mais tranquilo.

Nesse sonho eu permanecia hospitalizado em uma clínica chefiada por três sócios médicos, um deles era este de fama internacional, que chamarei de doutor Mesignori. Ele era o principal investidor da clínica. Atendia pacientes americanos por videoconferência e sua estatística de 99% no salvamento de vidas impressionava a todos. Em sua sala havia uma linha telefônica destinada somente ao atendimento estrangeiro e, incrivelmente, um de seus pacientes era Donald Trump — e quando eu soube, à espreita pelas informações de corredor como estava passei logo adiante que “o cara” atendia o presidente dos Estados Unidos em uma videoconferência. Em contrapartida, como um mero mortal, eu não teria privilégio algum, mas necessitava utilizar com urgência uma de suas sofisticadas máquinas para sobreviver. A prioridade no uso dos equipamentos, entretanto, era de Mesignori. Eu e os demais pacientes permanecíamos em máquinas que apenas mediam o nosso tempo de vida, mas não tinham a tecnologia necessária para nos salvar. Quando o medidor conectado a algum paciente apontava 100%, ele entrava em óbito. Apesar do meu relógio marcar 85% o médico não permitiu que fosse ligado a uma de suas máquinas. A situação ficou tão delicada que a médica que me atendia entrou na sala do doutor, discutindo severamente sobre os seus pacientes serem todos de prioridade, e os dela não. Muitos começariam a morrer, disse a ele. O famoso doutor respondeu que não poderia fazer nada, ele também estava salvando vidas. A médica saiu abalada e Mesignori chutou a porta com raiva — xingou todos do local, parecendo possuído por um ódio perigoso. Como era a pessoa mais influente na clínica, os enfermeiros o temiam, e com isto obedeciam suas ordens calados; foi quando um plano sinistro teve início: eu e outros paciente passamos a receber visitas de sua enfermaria e a tomar novos medicamentos. Com eles meu estado piorou gravemente e o medidor de vida registrava 95%. Os últimos 5% poderiam se extinguir subitamente, mas por iniciativa da doutora foi decidido que eu dividiria a máquina com uma paciente de Mesignori. A mulher foi desconectada para me dar a vez por trinta minutos, e aos poucos a minha condição melhorou. O alívio durou até Mesignori invadir o espaço, e ele estava literalmente transtornado. Instalou o caos exigindo a volta de sua paciente. Por sua vez, a mulher marcava 65%, portanto poderia esperar meia hora, mas visivelmente irritada ela pronunciou:

— Estou pagando caro. Exijo ser atendida!

Representando a outra parte do embate, a médica e o terceiro sócio se juntaram buscando meios para tomar uma atitude sensata: manter todos os pacientes vivos. Com isso Mesignori ameaçou processá-los. Seu contrato com a clínica estaria sendo quebrado. A paciente rica havia se estressado e, no mesmo instante, o doutor recebeu um informe por telefone acusando que sua taxa de 99% de eficácia havia caído — quando o percebeu, ficou ainda mais louco. Entrou na sala batendo a porta e estava prestes a agredir os outros médicos. Enquanto eu estava no equipamento, melhorava, mas quando saia, rapidamente perdia vitalidade, até que Mesignori surgiu em frente ao meu leito e disse que tinha um outro tratamento para o meu caso. Eu não precisaria mais ficar em sua máquina, pois ele tinha encontrado uma nova solução, e voltou com diversas injeções. Duas enfermeiras viram a cena e ficaram chocadas, estarrecidas! Chorando, rasgaram o crachá porque não trabalhariam mais para “aquele monstro”, disseram, e ainda o acusariam de homicídio.

Dia 3 de julho. Paciente apresenta piora — No mundo real minha condição respiratória havia piorado, mas sem evidências de nova infecção em curso. Nesse dia a equipe precisou puncionar a veia jugular interna direita e constataram que minha diurese marcava apenas 700 ml/24h. Com o quadro de insuficiência renal, cogitaram fazer hemodiálise. A equipe da UTI ainda avaliava me colocar na posição prona; no dia seguinte tiveram mesmo que me deixar de bruços por 16 horas. O fentanil e o midazolam tiveram as doses dobradas. O prontuário apontava plano de comunicar os familiares sobre a gravidade do quadro, assim como os próximos planos terapêuticos, seus riscos e prognósticos. No dia 5 a radiografia de tórax registrou piora da consolidação a direita e o aumento de lactato circulante, o que alterava o fornecimento de oxigênio. Foi quando deram início ao uso de tazocin, uma associação de antibacterianos semissintéticos.


Você precisa morrer

A presunção do conhecimento, um fetiche antes da circunstância de minha internação, não era mais uma muleta em que poderia me apoiar. Estava nú no escuro e um tipo de sacrifício carecia de realização, sua ocorrência seria uma eventualidade. A contradição entre a razão e a emoção, entre meu lado material e o espiritual, se metamorfoseava em uma crise aguda cujo anseio por serenidade demandava reestruturação. A intuição me levava a cenas futuras, que de fato ocorreriam, mas somente após o fim destes pesadelos, quando viriam paisagens livres de intencionalidade. Uma coisa nova somente advém quando o ciclo oposto termina; assim é na compreensão do tao sobre o encontro dos opostos, no instante em que para um lado nosso o momento significa a morte, e para o outro, o nascimento.

Sobre esse processo de metamorfose Carl Jung se posicionou, um século atrás, afirmando que o sacrificado necessita de um corpo forte e saudável para suportar o abalo. Como exemplo basta analisar o meu caso. A crise do paciente, por vezes, representa a morte quando o corpo debilitado enfrenta a doença, estabelece Jung, que afirmou em seus comentários sobre O segredo da flor de ouro: “a faca do sacrifício se encontra nas mãos do sacrificado, e do sacrificador é exigida a morte”. É uma abordagem a ser considerada, especialmente sobre o processo de adoecimento. Sob a ótica taoista, se um lado chega em seu derradeiro momento é natural que mesmo sabendo ser o seu fim execute seu destino. Em benefício próprio, o sacrificado o aceita entendendo que após o fim há um novo início. E foi como sucedeu. Como um jornalista, acostumado a buscar nos fatos as confirmações da verdade ou daquilo que chamamos de realidade, entendo perfeitamente que este raciocínio possa ser um exercício de estranheza. Como ocidentais, — afirmo de uma forma generalista, apenas para exemplificar o nosso contexto — buscamos afirmações calcadas no que conhecemos da realidade prática, o fazemos automaticamente porque não gostamos de perder tempo e nos parece o correto; entretanto, em algumas oportunidades vivenciamos paradoxos, e o que existe para ser compreendido vai muito além das aparências.

A chave para o entendimento pleno deste relato, como já evidenciado, está na experiência onírica e nestas ideias, que encontrarão a superação do problema apresentado apenas no próximo capítulo. No mundo dos sonhos, por muito tempo continuei aterrorizado diante de impulsos expressamente associados à medos e apegos. Acredito que todos nós provamos destes venenos inconscientemente. Embora exista um sentimento fantasmagórico em certos sonhos e uma frequência de citação à morte que pareça inapropriada ou um abuso discursivo, esta não é nem de perto a minha intenção. O presente relato aponta humildemente para uma compreensão mais ampla da vida em conjunto com a experiência subjetiva dos sonhos. As somas da objetividade com a subjetividade buscam a complementariedade necessária para um juízo mais fecundo. Como essas sutilezas podem nos ajudar em muito, e desejo que o leitor entenda, citarei um exemplo abstrato de simples compreensão —pode ser acessado pela internet — basta buscar pela obra Império da Luz, de René Magritte, uma arte figurativa do Surrealismo. Na parte superior da obra o azul evidencia o céu diurno, com nuvens brancas; na parte inferior, ao fundo vemos árvores na escuridão e, em primeiro plano, uma casa com a fachada iluminada pela luz de um pequeno poste, além de um lago, colocando em dúvida a percepção da cena. A mesma cena representa o dia e a noite, desta forma, considero sábio encarar o quanto antes a visão da morte porque ela pode ser figurativa e educar para experiências da vida. Assim, a morte pode estar dentro da vida, e a vida, dentro da morte. Além disso, por experiência própria pude atestar que tanto melhor é estar preparado, pois o sofrimento em muito se deve da não aceitação e negação da pluralidade constante dos fenômenos e da impermanência da vida.

No próximo sonho eu estava em um hospital que parecia ser o do mundo real, exceto pela completa desordem que fora instalada. No início eu recebia os cuidados da enfermeira Jennifer, que me atendia junto ao Roberto. Ela cantava e falava muito sobre como haviam se conhecido durante a adolescência em um concurso de música, no interior de Minas. Ele foi compositor de algumas músicas que até pegaram na região durante o passado, mas com o passar do tempo o sujeito foi ignorado até por seus antigos fãs. Jennifer era avoada, distraída, e logo deu com a língua nos dentes contando sobre seu relacionamento com Roberto. Em alguma parte de suas histórias o namoro não deu certo, talvez por seus impulsos, que eram de caráter instável. Ao cantar ela desafinava clamorosamente e para piorar não parava — isto tirava completamente o meu sossego no leito do hospital. Eles nunca me deixavam e com o passar do tempo, das injeções e dos exames, falaram que a minha situação não era boa. Eu estranhei, pois estava fraco mas resistia e parecia melhorar.

Os dias se arrastavam com os dois ao meu lado até que passaram a me provocar propositalmente. Falavam de suas vidas e ambições, incansavelmente. Certo dia, neste sonho, consegui que um médico os tirasse de meu atendimento, e logo vieram outras enfermeiras. Não tinham a malícia de Jennifer e Roberto, mas eram associadas a eles e foram muito diretas, avisando que tudo ficaria bem — eu não precisaria ter medo, mas deveria morrer. “Agora chegou a hora de morrer”, diziam ironizando com caretas e apontando unhas compridas com que ameaçavam cortar minha jugular, ou dariam uma injeção em minha veia e eu nem sentiria nada. Uma nova onda sombria se apossou do sonho e as enfermeiras tentaram me segurar a força, e eu não me rendi; para me defender as empurrava e chutava como podia, o que as enfureceu. Uma delas disse que estaria dificultando as coisas, sendo que se colaborasse não sentiria dor. Ao reagir daquela maneira agressiva a coisa iria ficar pior para o meu lado, anunciaram.

— Primeiro vamos cortar as suas pernas, daí quero ver você se debater — ameaçaram com raiva.

Em desespero, tentei avisar aos médicos e enfermeiros que tinham pessoas querendo me matar. Falaram que não poderia ser verdade, mas iriam checar. Quando as enfermeiras voltaram e estes médicos ainda estavam ali, trocaram olhares entre si e caíram na gargalhada — eu estava mesmo perdido. Para piorar, surgiu um socorrista enorme e completamente louco que veio me buscar, estava drogado e apresentava espasmos violentos na musculatura do tórax, revirando o pescoço alucinadamente e, com os olhos esbugalhados, disse que me levaria para sua ambulância. Não havia mais lugar para mim no hospital. Foi quando Jennifer voltou e se fez de boazinha, primeiramente, até que eu estivesse quase calmo, para depois falar que poderia escolher ir com ele ou ficar, mas se ficasse ela cortaria um membro do meu corpo. Eu poderia escolher entre um braço ou uma perna. O horror crescia e a multiplicidade de cenas e ameaças, incompreensíveis, avançava; tudo o que queria era pedir por socorro, mas ninguém apareceu. Ouvia o viciado dizer que poderia me manter vivo por um bom tempo ainda, mas não queria contar para onde me levaria. Eu sabia onde era. Tinha ouvido uma enfermeira cochichar que seria enterrado em um lugar abandonado assim que as drogas acabassem comigo. E aos poucos comecei a perder os sentidos, os batimentos cardíacos diminuíram e eu mal conseguia mover o corpo. Ao redor as vozes se tornaram baixas e distantes, até que uma enfermeira mediu meu pulso e, enfim, constatou minha morte. Eu havia morrido, mas continuava a ouvir. Enxergava luzes e via a movimentação quando percebi me guiarem de maca para a frente de um elevador. Tentei chamar a atenção deles mexendo meu braço, mas ninguém percebeu. Fiquei largado ali por algum tempo, e o que era inconformismo se tornou aceitação. Eu seria enterrado vivo. Tudo ficaria escuro e ainda teria consciência, por um tempo, até que, eventualmente, o pesadelo chegaria a um fim e meu espírito haveria de tomar um caminho. Eu não podia fazer nada, e quando já nem ligava mais para o que aconteceria, uma médica apareceu e me examinou, exclamando aos colegas que “o paciente” tinha pulso. Logo a equipe me ligou aos equipamentos; depois os médicos e as enfermeiras que eu reconhecia foram sumindo. Aos poucos surgiram outras pessoas, com elas eu sentia dor e era maltratado, até que a situação logo foi esclarecida: o hospital fora sequestrado por uma equipe falsa. Em breve me colocaram no telefone para falar com a minha família — deveriam depositar uma certa quantia em dinheiro, em um latão de lixo em frente ao hospital, as 20 horas, ou eu seria morto.

Eram tantos os membros da equipe falsa que não escondiam mais a situação dos médicos e enfermeiros que ainda restavam. Falavam livremente sobre a programação das medicações e do envenenamento. Regulavam as doses para nos matar aos poucos, ganhando tempo para extorquir os familiares. Em uma tarde que era drogado a médica que me atendia desde o início apareceu no setor onde eu estava; tentou me ajudar, mas acabou ameaçada — deveria fazer o que mandavam ou sua família seria morta. Ela se desesperou, gritou e disse que iriam se arrepender, mas a verdade é que não podia fazer nada. Era solidária aos pacientes, sem poder ajudá-los. Todos no setor seriam mortos, disse uma das sequestradoras instigando meu medo. A médica e os poucos que não eram da gangue tentavam nos defender retirando as drogas e nos ajudando a respirar com mais facilidade, mas quando os sequestradores regressavam voltavam a nos intoxicar. A angústia sentida não pode ser comparada a nada que já experimentei em minha vida — foi alucinante, um tipo macabro de tortura psicológica e física. O sofrimento era incalculável, levando-nos a estados deploráveis em que pedíamos para que parassem com aquilo; eu não queria morrer, ainda assim falava para me matarem. O desesperador é que me agarrava ao pouco oxigênio que recebia com esperança. A situação chegou em um estado crucial, até que alguém da equipe conseguiu fazer contato fora do hospital. Os sequestradores descobriram a denúncia, mas já tinham conseguido dar o golpe nas famílias e disseram que ninguém poderia fazer nada. As máquinas haviam sido programadas para nos asfixiar, sem terem como reverter o processo. Depois disto, fugiram.

Quando o socorro chegou, constataram que todo o equipamento conectado a nós não era dali e, para piorar, os medicamentos haviam sido roubados. O hospital estava zerado! As máquinas eram bloqueadas por códigos e uma nova corrida contra o tempo teve início. No monitor da máquina chegaram mensagens de texto indicando que alguém me contatava. Havia um código sonoro que identifiquei sendo igual aos que eu ouvia nas conversas com Jennifer, Roberto e suas músicas. Me senti arrepiado, pois o código estivera presente desde a clínica dos contaminados em que os pacientes viravam biscoitos: era o som da vinheta da série gravada naquele sonho. Todos os sonhos se conectavam e eram o mesmo, e tudo fazia parte de uma série macabra. A mensagem perguntava se eu preferia dar uma volta com eles ou morrer em trinta minutos. Mal acreditava no que estava acontecendo. Os equipamentos permaneciam controlados por pessoas à distância e as mensagens eram seguidas. Vinham em uma infinidade de perguntas que eu precisava responder rapidamente ou meu respirador seria desligado —não tinha tempo de pedir socorro, era questão de responder ou morrer! Ia à loucura, até que os técnicos retomaram o controle das máquinas e muitos de nós conseguiram se salvar, outros morreram.

A perseguição dos farsantes havia terminado, mas em determinado fim de tarde os médicos constataram que o vírus tinha se espalhado em novas infecções. Eu e os demais onze pacientes que estavam na UTI éramos bem atendidos, mas, um a um, foram desligados dos leitores — tinham morrido e apenas eu seguia com vida. O vírus se alastrou em infecções múltiplas e o local se tornou uma câmara mortal, e senti cada um deles agonizando por um minuto antes de falecerem. Minha vez logo chegaria. Recebia medicação para não sentir dor, o que me deixava mole, mas eu não queria dormir porque sabia que estavam só aguardando a minha morte para desligar o equipamento. Foi quando disse à enfermeira que não queria morrer. Disse para não me preocupar porque ficaria bem, entretanto, eu sabia que não era verdade, seríamos todos incinerados no crematório coletivo; tudo deveria ser queimado, até as nossas roupas — diante do inferno, pedi a ela meia hora para me preparar. Percebi que o tempo já havia passado e muito cansado perguntei se ainda estava comigo.

— Sim, estamos aqui — respondeu, e repetiu que eu não iria morrer.

— Mas vocês estão nos desligando — contestei duvidoso de tudo, inclusive do receio que me afligia. A mulher me olhava com sinceridade, e eu mal podia acreditar que suas palavras eram verdadeiras.

— Aqui nós não desligamos ninguém, nós os salvamos.

Olhei ao redor e todos os pacientes estavam vivos, então percebi que estava sonhando e, pela primeira vez, pude dormir em paz. Se a morte era real ou um sonho, eu não me importava mais. O sentimento de aceitação surgiu devagar, mas constante, até que a paz substituiu a aflição. O cálice da amargura que antes brotava em uma luta pela sobrevivência, sob a ótica de uma projeção de cena futura deu lugar a uma experiência livre do tempo, onde a expressão do mundo não era mais a mesma. Enfim, eu superara tudo o que me afligia e não haveria mais razão para os pesadelos.



CAPÍTULO 4 —REDENÇÃO


Dia 6 de julho. Paciente sem necessidade de prona — Seguia em cuidados intensivos e havia já o plano para desmame da ventilação. No grupo de meus amigos eram trocadas informações a respeito do plano de extubação, mas como eu havia me agitado muito na primeira tentativa de redução da sedação os médicos a adiaram. À sombra dos dias anteriores, havia um cenário possível para o procedimento de traqueostomia caso houvesse agravamento na ventilação.

Na sequência dos sonhos teve início um episódio inusitado que pode ser equiparado perfeitamente à temática da ficção científica ou do espiritismo. Eu estava em um hospital diferente de tudo o que conhecemos; o ambiente consistia em duas grandes alas onde os pacientes recebiam o tratamento, e surpreendentemente tinham equipas voluntárias formadas por pessoas do meu convívio, entre amigos e familiares. O centro médico também tinha uma equipe própria, que pouco aparecia, de modo que o foco da minha atenção se voltava às pessoas que faziam parte da minha vida. Os voluntários haviam sido recrutados em caráter permanente, pois os doentes do local eram pessoas cuja doença atingira um ponto de não retorno à vida. Para a nossa boa sorte — minha e dos outros doentes — havia um meio de reaproveitar os tecidos, sangue, órgãos e o restante dos nossos materiais biológicos, reintroduzindo as consciências em novos corpos. Nesse trabalho os corpos adoecidos recebiam lasers e medicações que lentamente decompunham a matéria. Em um dia poderia se ter os pés decompostos e no outro as pernas, dependendo do caso. Não era como um filme de ficção feliz ou empolgante, a experiência incidia em um sofrimento coletivo compartilhado entre as pessoas que povoavam este intermezzo. Uma ala para dar adeus e outra para a preparação do porvir, um drama marcado por dois atos. Após decomposto, nosso material entrava na outra ala, o setor onde o trabalho era mais cansativo — cada parte e resto do material passava pelos cuidados do corpo de voluntários. Para a coleta e separação nossos familiares e amigos se revezavam em máquinas que pareciam com imensos teares operados por laser. A tecnologia lia nosso material genético e separava as partes dos corpos para o início da reciclagem, sendo construídas novas unidades, que não eram novos corpos densos, mas corpos sutis para a continuidade da experiência onírica. Em certo momento, quando eu já não tinha as pernas, lembro que acompanhar este flagelo era mais difícil para os amigos. Eu apenas assistia o equipamento constante iniciando a desintegração do meu tronco. O medo era presente durante toda a ação porque não existiam certezas, e nem tínhamos consciência do que se passava ou por que as coisas aconteciam daquele jeito.

Muitos corpos não evoluíam durante a etapa da recriação, e seu material era reaproveitado por outros pacientes. Nada deveria ser desperdiçado. Os donos destes corpos eram pessoas que morriam e partiam para outro lugar — e ninguém sabia como seria, mas havia um transporte dedicado a elas. Em local na segunda ala, braços robóticos manuseavam o material dissecado para a impressão de novos membros e, todo cronometrado, o processo não permitia desperdício de tempo, caso contrário a operação seria afetada. Os voluntários eram parte essencial de todo este tratamento, sem a sua dedicação integral o trabalho seria impossível; e também tinham que contribuir com uma parte de sua energia vital — essa era a única maneira de manter nossas consciências ligadas aos corpos. Para os voluntários os turnos pareciam momentos de um alucinante padecimento e, ao final de suas jornadas — nem todos aguentavam trabalhar todo este tempo devido à exaustão — alguns deles necessitavam ir até câmaras de revitalização antes de acordarem no dia seguinte. Estou certo de que um paciente nunca ficava totalmente sozinho, e sempre havia um voluntário que apenas poderia ir embora quando outro assumisse a função.


Estudo da mente

Eu não contava mais com o meu corpo e minha existência se dava em um nível apenas mental — a verdadeira natureza ainda me seria revelada. Em busca de um entendimento para a sequência final dos sonhos, cabe um estudo acerca dos processos da mente. O budismo tibetano aponta aspectos de nossa mente que são mostrados no momento da morte, e dois deles são de destaque: a mente ordinária e a natureza da mente. A consciência do que efetivamente somos durante a vida é a nossa mente ordinária, que opera em relação a pontos de referência externos. Ela é discursiva e dual — tem a atributo de separar, classificar e desejar ou repelir as coisas que gosta ou desgosta. Essa mente precisa se autoafirmar para continuar existindo neste caráter, por isto ela é vulnerável a experiências externas. Ela não possui o controle, embora muitos de nós estejam convencidos do contrário. Já a natureza da mente é intocada pelas mudanças, e para ela mesmo a morte é só mais um movimento. Não devemos associá-la apenas à morte, isto espero ter aprendido em alguns dos ensinamentos que conheci no budismo, e que mesmo estando à minha disposição não penetraram fundo o suficiente para que reconhecesse os sonhos como ilusões da mente ordinária. A natureza da mente está presente na vida e na morte, ainda que seja praticamente inexplorada pelos indivíduos até que um dia passem por uma experiência especial em que se obtém pequenos vislumbres em instantes preciosos. Em tibetano, a natureza da mente se chama rigpa, é a consciência primordial. Para uma compreensão cristã, pode ser compreendida como Deus, pois é a natureza de tudo; no budismo não há um Deus, mas existe a natureza búdica — em última instância tratam essencialmente da mesma manifestação, mas com enormes diferenças teológicas e práticas ainda mais diversas.

Antes de apresentar a virada redentora usarei um outro conceito tibetano, o “bardo”, que afere significado de “transição” entre os grandes eventos da vida e da morte. Sem me estender, — esta não é minha intenção e nem domino o assunto — devo citar apenas uma parte da obra do mestre Sogyal Rinpoche em que ele explica que o bardo da morte é considerado doloroso e se desdobra do início do processo de morrer, até o fim da respiração interior, o que evidentemente não ocorreu comigo graças ao corpo médico do hospital. O mestre afirma que adoecer e adormecer são semelhantes ao bardo da morte, já que os pensamentos se dissipam. “Adormecer é semelhante ao bardo da morte, em que os elementos e os processos do pensamento se dissolvem, dando acesso a experiência da luminosidade base. Sonhar tem afinidade com o bardo do vir a ser, o estado intermediário no qual você tem um corpo mental que passa por todos os tipos de experiências com nosso corpo onírico, em que vivemos as experiências da vida onírica. Entre o bardo da morte e o bardo do vir a ser há um estado especial de luminosidade, ou Clara Luz, chamado bardo do dharmata. É uma experiência que ocorre a todo o mundo, mas da qual poucos se dão conta. Corresponde ao período logo após o adormecer e antes que os sonhos comecem. O bardo da morte é um estado de consciência mais profundo e possui momentos mais poderosos do que o do sono e do sonho”, narra Rinpoche no Livro Tibetano do viver e do morrer.

Voltando ao sonho, em fase que o centro médico fora superado, a experiência seguiu com uma etapa de longa espera. Minha mente ficou em reflexão sobre a vida, os acertos e erros, avaliando inúmeros eventos ocorridos. A primeira abertura que me lembro após esta complexa reconstrução se passou em uma clínica familiar japonesa. Haviam rituais muito específicos e eu era cuidado pela filha do patriarca. O que dizer… Não irei me arriscar pois não compreendi e nem me lembro bem, mas percebi que eram tradicionais, e foram trabalhadas questões de disciplina, principalmente. Em seguida ao seu tratamento segui em processo de esquecimento da doença e novamente revivi partes da minha vida, para depois esquecê-las por completo. Era como se eu estivesse andando pelo mundo e experimentando a vida uma segunda vez, para depois me afastar. Se quisermos avançar na compreensão do que procedeu é necessário pensarmos na natureza anímica da vida, ou poderemos cair no erro de uma típica análise crítica que mal disfarça o orgulho provindo de um sistema de lógica niilista.

Carl Jung propôs à academia ocidental que as representações e ações conscientes desenvolvem-se a partir do inconsciente, e ambos permanecem conectados durante toda a vida. Para o nosso I Ching, ou I Guing, as ações do tao do homem derivam do movimento no tao do céu e, assim, permanecem unidas durante toda a mutação. O homem é um ser instintivo, e utiliza mais do instinto do que imagina, muito além do que usa de sua intencionalidade lúcida. Vive mais das paixões do que da racionalidade ausente de conteúdos pré-determinados, sua razão é falha e ele sabe disto — o homem só não muda por ser dominado por seu instinto. Se meus sonhos se inclinaram à continuas perseguições e pavores, naquela circunstância minha mente operava totalmente em dimensão delusória, estando o juízo consciente adormecido. Toda a estranheza sentida por meu corpo, que dormia no hospital, forçava a mente à essa característica, levando-me até as últimas circunstâncias — especialmente com a sedação ininterrupta. A formação dos pesadelos foi a materialização desta força que sobrevêm do inconsciente, sem penetrar no lado do inconsciente que registra a sabedoria. A dimensão anímica é uma parte do que somos e se projeta no tempo e no espaço, ela é a nossa história, seja o nosso passado medieval de natureza bárbara, que chega ao tempo presente como um reflexo natural da individualização diante de possíveis ameaças, e também são as lições e descobertas do espírito. Quando os reis bárbaros e os condes chacinavam seus oponentes vizinhos, o faziam por ambição e pelas riquezas, mas também por sobrevivência devido à difícil aceitação da individualização do outro, especialmente quando houvessem tendências políticas distintas. Nesses casos, pequenas ações estimulavam rancores que levavam à traições e banhos de sangue. Tal comportamento chega à contemporaneidade, por exemplo, no que conhecemos como polarização política, que é uma tendência de confrontação de opiniões que gera o sentimento de não aceitação das diferenças com o isolamento psicológico das semelhanças. As afinidades, entretanto, são maiores do que as diferenças, mas acabam por se ocultarem em uma espessa névoa que relega a percepção humana a um degrau inferior em nossa escala evolutiva, em termos de consciência. Todos nós compartilhamos em algum grau maior ou menor desta correspondência atemporal de natureza anímica, mas nem sempre a enxergamos. O medo do novo, da cultura diferente do estrangeiro e mesmo da diversidade ou adversidade, são as principais características da arrastada neurose humana revivida a cada geração, nutrida do apego primitivo daquilo que chega a cultura contemporânea através dos milênios.

Minha experiência estava destinada a um ponto de ruptura com a solidez deste elo com o passado, para aprofundar-se no substrato de aprendizagem sutil do lado anímico. Nesse ponto, que é de teorização, o leitor não precisa se preocupar com os conceitos caso algum entendimento passe batido; e ainda que eu o faça com pouca experiência na área da psicologia, as considero válidas por ter refletido sobre as circunstâncias subjetivas. Além disso, logo chegaremos à dita redenção. Em princípio, os complexos derivados da psique reúnem imagens e pensamentos marcados pelos afetos, e os sonhos expuseram diversas manifestações simbólicas de arquétipos violadores que emergiram em neurose. Fui dominado por figuras do inconsciente individual, principalmente, que são como aquelas sujeirinhas que varremos para debaixo do tapete e, ressalto, novamente, que estava dormindo e sob severo efeito de sedativos.

Nesse ponto alguém pode questionar se há semelhanças entre os sonhos e as manifestações de quando estamos acordados. Creio que sim, e há que se considerar em qual disposição essas nossas partes se encontram — consciente e inconsciente — e como estão configuradas, a fim de entender se nós não adentramos em um território de pouca sobriedade. A viabilidade destes relacionamentos psíquicos, entre o ego e as personalidades fragmentárias, deve ser observada e não precisa ser compreendida em teoria, o mais relevante é que nossas ações físicas e verbais sejam observadas a fim de reconhecer o tipo de olhar que direcionamos ao mundo. O mundo costuma retribuir por meio das ações das outras pessoas que entram e saem de nossas vidas, e em como direcionamos o nosso olhar para elas. Estamos em paz ou vivemos brigados? Essas são pistas que, juntamente aos sonhos, experiências de vida adquiridas, relacionamentos e o tipo de conteúdo que absorvemos do mundo ao nosso redor, mostram a configuração da nossa mente consciente e apresentam um panorama do que pode estar vindo do vasto e imensurável inconsciente. Esse evento é a perspectiva em que reside a intenção deste relato, sobretudo aos que passaram por experiências graves de adoecimento ou acidentes, no intuito de que encontrem as ferramentas psicológicas que podem trazer significado amplo e um tipo de realização em suas vidas. Que outro proveito poderíamos tirar das experiências em que vida e morte se aproximam?

A proximidade da morte é também uma oportunidade para a vida. Para uma nova vida cujo olhar ainda tem ligação com o passado através das lembranças, mas sem a conexão rígida e limitadora. O processo envolve uma estrapolação da consciência a territórios novos e, portanto, à superação dos medos passados e neuroses associadas a mitos arcaicos. Talvez esse seja o caminho natural para cada vez mais pessoas em algum momento. A experiência que eu tive com meu adoecimento me fez acreditar que os indivíduos criam essa dependência do passado, não por afirmarem que é uma escolha sua, mas por terem este elo sólido com o inconsciente. A própria vivência do indivíduo, e a experiência de ter alguém importante em nossas vidas, disponibiliza desafios cujo resultado leva à opção de mudar para outra compreensão ou permanecer igual e insistir na posição do ego. Minha aspiração vai de encontro ao mito de Prometeu, que ousou furtar o fogo do Olimpo trazendo-o aos homens, e o fogo pode ser compreendido como o conhecimento — assim, minha vontade se dirige à emancipação de nós mesmos, obtendo liberdade e conhecimento capazes de desacatar os mitos e realizar a superação que constitui a mudança. Lembro que isto em nada se assemelha com a exaltação da postura provocativa em relação às antigas tradições, muito pelo contrário, creio que devem ser respeitadas, mas abandonar as atualizações em favor do tempo passado não é um luxo que as massas possam seguir, caso contrário o mundo estaria condenado ao passado. Entendo que este processo ocorra intercalado ao longo da história; a estagnação e o avanço podem ser observados lutando e se complementando de acordo com a época que o indivíduo esteja passando, e também o mundo. Por fim, creio que toda resistência que privilegia apenas um lado ou polaridade tende ao exagero e a exacerbação inconsequente.

Minha experiência, colegas de Covid, ex-pacientes e amigos, faz com que eu considere apropriado evoluir a relação de dependência inconsciente do passado para as formas novas que se manifestam na vida, mas que não sejamos artificiais — não precisamos renegar o passado nem simular uma existência que nunca teve laços fortes com a própria história. A negação não traz bons resultados. Sugiro apenas que todos nós possamos estar disponíveis aos nossos conteúdos reprimidos, os aspectos desagradáveis que ao entrar em contato com a consciência são negados por nosso ego, o qual Jung chama de função compensatória do inconsciente. Trato aqui dos aspectos de nossa experiência individual e também da vida coletiva, que através do inconsciente, com imagens arquetípicas primordiais, nos colocam diariamente em posições que não compreendemos, mas que geram conflitos internos que não são bem a posição que o ego almeja. Quando recebemos projeções do inconsciente por meio de impulsos motivados pelas emoções, naturalmente cruzamos o mundo atrás das coisas. E podemos não enxergar que o presente está ligado a histórias mal resolvidas de nossas vidas, mas se tomarmos uma atitude de tomar as rédeas da vida, certamente alcançaremos um estado de paz. A saída para as armadilhas da mente é, portanto, olhar para dentro e encarar os demônios internos, e entender que são representações complexas de nós e do mundo. Somente após este exame creio que estejamos aptos a romper o elo prejudicial do passado, sem, no entanto, romper com o inconsciente — o que seria impossível e somente sua tentativa seria prejudicial. O que o homem precisa para ser realizado e obter paz é afinar-se consigo mesmo. Se isso for muito, basta pensar que consciente e inconsciente devem caminhar juntos e, quanto menor forem as barreiras, tanto melhor para cada indivíduo e para o crescimento complementar da consciência social. Um efeito prejudicial também se dá com os indivíduos que buscam a todo custo um estado de consciência absoluta, passando por cima de sua correspondência anímica. Não funciona. Melhor entender que há um processo transitório entre o equilíbrio destes estados, mas que entender a necessidade em avançar na consciência é único meio para avançarmos como sociedade.

Se algum dia a maioria dos seres humanos compreendê-lo, certamente os humanos descompensados serão uma minoria. E a condição para sermos mais lúcidos está ao alcance de todos, sem necessidade alguma de recorrermos às teorias. Eu subi apenas ao primeiro degrau desta longa escadaria da consciência, mas compreendi que o emergir da autoconsciência, como uma prática cotidiana, é o único caminho para a resolução de uma série de problemas que trataremos nos capítulos finais. É observável em nossa vida prática o exemplo da negação: uma característica plena e visível durante a pandemia no Brasil. Um de seus sintomas é a exaltação da neurose, que se vê logo em uma série de posicionamentos deslocados da realidade, sejam ideológicos, político-partidários, religiosos, sociais, culturais ou ambientais. A neurose não leva em conta a racionalização sincera e apenas coleta energias na natureza instintiva, então temos à solta o homo demens gerando a desordem. Por sua vez, este elemento é negado pela razão relativa. Para irmos adiante no relato, concordo com os autores e religiosos que indicam para a coletividade a adoção de alguma bandeira positiva em suas vidas, como o voluntariado ou o apoio a causas sociais. Desse modo, com o passar do tempo o novo evento ocupará o lugar das fixações negativas e improdutivas. Essa indicação recomenda um caminho que não reprime a sombra, simplesmente os espaços inconscientes se ajustam ao novo paradigma. As avalanches do mundo externo não podem mais ferir o nosso mundo interno, pois nele somos soberanos, e as circunstâncias internas nascem da maneira como pensamos a vida. Quando o indivíduo se encontrar em uma nova crise ele continuará a vivenciando, contudo, com um outro tipo de desenvoltura em que não permaneça no olho do furacão, mas observe a tempestade à distância segura, sentindo as emoções sem se identificar com o ponto da paralisia ou do destempero.

Essas observações são dadas por minha experiência pessoal e pela pesquisa e observação comportamental humana, de forma alguma constituindo um tipo de aconselhamento profissional — tão somente, expressam a opinião de uma pessoa interessada na mente humana. E que não se alimentem as preocupações em demasiado, pois o caminho para a liberdade interior não consiste em fazer algo. Pelo que noto, simplesmente acontece no caminhar pela via da sinceridade, da paciência e da boa disposição com os demais seres. Essas simples ações pacificadoras permitem o avanço. Mentir a si próprio, não reconhecendo a nossa impossibilidade de controle, é o pior veneno que nos atinge.


Desapego completo

Eu estava no mundo onírico, mas desta vez o sonho não se passava em um hospital. Andava em uma casa situada em alguma localidade latina, de língua espanhola, cujas paredes apresentavam grandes obras artísticas e, nesta casa, residia a segunda esposa de um famoso pintor. Eu era acompanhado por minha mãe e algumas amigas suas que se relacionavam com o falecido pintor e alguns familiares. A ocasião consistia em um reencontro após uma vida, naquela casa cheia de memórias acerca de expressões puras, de naturezas estéticas elevadas e saudações ao passado. No salão central a parede era ocupada por um imenso painel que provocava a relação imediata da casa com seus moradores e visitantes — nele, havia a figura de um esbelto cavalo. O pintor foi um muralista particularmente ligado a história social do povoado, sendo ele a referência maior das cercanias que se estendiam ao redor, o que mantinha a casa como seu epicentro cultural. Sua obra toda pertencera a ágora daquela nação enquanto ideal referenciado pelo autor. Ele transmitia ao povo conhecimento com perfeição, fosse na praça central, nos mercados públicos, nos salões artísticos e em outros espaços urbanos do passado. Em vicissitude de sua morte, parte do que pulsava na ágora estava, durante o meu sonho, lacrado naquela residência, e lá eu estava para aprender com sua obra, refletindo o eco sobrenatural acerca da vida e do povo. As pessoas que ali se reuniam, nos sofás da sala, apenas esperavam como testemunhas vivas.

A casa do pintor era um lugar de espera e de paciência. Ao longo de uma profunda meditação minha consciência se dissolveu no quadro e meu espírito passou a ser espectador daquele ar que denotava longa espera. Como se fosse dotada de intenso campo gravitacional, a pintura me atraia e não havia luz que a ela resistisse. Compactada na leitura de tantas batalhas, discussões e expressões da vida ocorridas nas últimas gerações, anunciadas com primor naquela pintura em que o cavalo era a chave, me vi como mais um personagem simbolizado naquela rara obra imaterial. Eu não estava mais vivo; através da obra enxerguei a luta, a violência, e o caos travado pelos homens em nome de uma ordem dissonante daquele tempo. O povo retratado pelo artista ainda não estava preparado para o próximo passo da evolução de sua estrutura social e, no centro da sala, não pude resistir, não pude mais manter em meus braços o apego à vida, e a vi seguir seu curso natural.

Em outra localidade, em território brasileiro ao sul do país, meu corpo era velado em um caixão de madeira exposto no salão de uma chácara onde amigos, familiares e até antepassados me acompanhavam durante um longo dia. O local consistia em uma antiga vila cujo patriarca militar construíra um pequeno forte, com canhões negros e vastos campos verdes. Ali vivia uma comunidade, desde os tempos sombrios, até os tempos de paz. Entre as benzedeiras houve muita paciência com os sentimentos de não aceitação e de culpas que as pessoas as vezes carregam, mesmo sem terem culpa alguma. Quando os canhões foram acionados e a pólvora queimou até o cano irromper em um estampido grosso do som do tiro, houve silêncio. Meu espírito estava ali, mas não era alcançado por emoções humanas além de uma intenção de se despedir — era como se eu estivesse esvaziado minha relação com o mundo. Estava em plena comunhão com a natureza sutil dos fenômenos, sem estar preso a uma forma, o que só posso denominar como um tipo incalculável de liberdade. Tudo isso foi auspicioso. Quanto as pessoas que ali estavam, com um simples olhar eu podia enxergá-las por inteiro e ver suas qualidades, muito maiores do que os defeitos. Ao olhar para uma árvore ou para o céu era como se eu fosse a árvore ou o céu, e me sentia pleno; contudo, fiquei sensibilizado com as pessoas e isto ascendeu em minha mente um sentimento de ligação com aquela vida, com aquele corpo que sobremaneira não parecia um cadáver comum, não murchara e nem perdera a cor. Em meio a consternação pública, ao assombro e ao sobrenatural que irrompeu durante a oração do pároco, eis que o finado pareceu movimentar-se a olhos vistos; logo começaram os primeiros rubores quando murmúrios e sinais da cruz foram repetidos pelas benzedeiras. O finado se levantou do caixão em carne e osso, e assim eu havia voltado.

A experiência que ligava o quadro, a morte, o sítio militar e meu retorno logo passou. No que eu revivi e a comoção entre todos os presentes foi resolvida, minha presença se dirigiu à uma igreja de um tempo no passado. Os cultos eram dirigidos por uma freira cuja autoridade não precisava ser empunhada, apenas era evidente que ela era a mais indicada a dirigir o local. Sua aura transparecia humildade e, vinda das ruas e da pobreza, chegou àquela posição ganhando o respeito de todos, inclusive de seu passado dificultoso. Junto a ela havia um menino, seu filho. Seu passado foi rude e, embora a boa samaritana conduzisse com fé e recebesse a dedicação das noviças, o filho, ainda grosseiro, abrutalhado e sem jeito ou vocação para o auxílio, era um fardo que a mãe carregava com amor. A freira estava ali para realizar um tratamento médico e tudo era muito escasso na vila em que a igreja estava localizada. Sua medicação era espiritual e, logo após seu efeito, fui levado a uma outra igreja em localidade próxima, mas no tempo atual — séculos à frente no tempo. Entendi que estava no interior de Minas Gerais. Eu era tratado por freiras que utilizavam das parcas economias para comprar remédios e antitérmicos. Lá surgiu uma amiga da área médica, estudante de medicina, que apareceu para ajudá-las com a aplicação de injeções, acompanhando o quadro do único paciente do local.

Minha reentrada na vida ocorrera por completo, contudo, não estaria livre dos conteúdos mentais, fossem eles positivos ou negativos. No mundo real os médicos haviam retirado a sedação e eu estava acordando, livre do maior perigo.


…continua



 
 
 

Comments


Post: Blog2_Post

©2020 por Covid-19: Uma história entre a vida e a morte. Orgulhosamente criado com Wix.com

bottom of page